Uma experiência além das expectativas

Mariana Crossetti da Hora

Graduanda em Relações Internacionais pela UFF.

Foi intercambista na Universidad de Salamanca (Espanha) em 2020.

O ano de 2020 foi um marco na história da humanidade pela terrível pandemia que vivenciamos. Para mim, foi também o ano do meu intercâmbio e atravessar essa experiência em outro país, longe da minha zona de conforto, se tornou um momento de inflexão na forma como enxergava muitas coisas e naquilo que valorizo. Este breve relato visa compartilhar um pouco desse período na minha vida evidenciando os diferentes impactos no âmbito pessoal, enquanto estudante de Relações Internacionais e futura profissional da área.

Quando entrei na universidade, fazer intercâmbio não era um grande sonho como é para muitas pessoas. Pela minha personalidade, a maioria das minhas escolhas é muito pesquisada e pensada e foi justamente dessa forma que agi com essa experiência. Toda a preparação apenas foi me convencendo cada vez mais de que essa seria uma oportunidade incrível para minha carreira e para meu amadurecimento, e fui cultivando, assim, um objetivo. Durante meu terceiro período, então, já possuía a carga horária necessária para me inscrever no edital de mobilidade da UFF e vi meu desejo tomando formas mais concretas. Estudei bastante, realizei as provas de idioma e escolhi em minhas duas opções uma universidade em Madri e uma em Paris.

Infelizmente, com os resultados do edital, não fui selecionada. Essa situação me deixou bem triste, mas busquei me consolar pensando que outras oportunidades iriam surgir. Porém, mesmo tentando apresentar uma postura positiva, foi um momento de grande frustração, e para mim, decisivo na minha percepção de que aquilo que eu havia cultivado como um objetivo muito racional, havia se tornado um sonho da mesma forma que o era para tantos colegas.

Decidi naquele momento que eu certamente não desistiria de realizar um intercâmbio e foi em meio a essa virada de sentimentos que me deparei com a reclassificação em que pude fazer novas opções, e, por fim, fui aprovada para realizar um semestre de mobilidade na Universidade de Salamanca, na Espanha. Hoje, não poderia es- tar mais grata por tudo ter acontecido dessa forma. Salamanca foi a cidade perfeita para mim e me proporcionou momentos muito especiais. Além disso, talvez meus sentimentos e a minha cabeça estariam em outra direção em relação à experiência e ela não teria sido igual.

Em janeiro de 2020, cheguei a Salamanca, e a cidade é de tirar o fôlego desde a primeira até a última vista. A alma da cidade está na Universidade de Salamanca e em seus estudantes, por isso, parecia que todo o seu ritmo girava em torno da vida universitária, gerando um clima muito agradável e jovem. Ao mesmo tempo, a cidade te entrega um ar do passado com seu centro histórico mantendo as construções intactas e preservadas. Além disso, antes de sair do Brasil, tomei conhecimento de que a universidade é uma das mais antigas da Europa, aumentando toda a carga cultural que tinha a oferecer.

Acredito que esses aspectos da cidade me fizeram, logo, comparar a rotina que iria estabelecer ali com a minha vida no Brasil. Vivo em Niterói, mesma cidade em que se situa o campus da UFF no qual estudo, e assim como percebi na Espanha, a presença da universidade na cidade estabelece um certo ritmo à vida ao seu redor. Nunca havia parado para refletir tanto sobre o papel da UFF na minha cidade, mas meu contato com Salamanca me abriu os olhos de que toda aquela conexão cidade-universidade também acontecia na minha cidade natal de maneira bem relevante.

Esse foi um dos primeiros pontos de aprendizado do meu intercâmbio: perceber mais o próprio lugar de onde venho, onde estudo, e enxergá-lo também como enxerguei Salamanca. Pode parecer um pouco estranho, mas ao mesmo tempo que estava deslumbrada com aquela pequena cidade espanhola, percebi os impactos do famoso “complexo de vira-lata” que muitas vezes cultivamos ao nos comparar com os países considerados desenvolvidos. A minha universidade no Brasil também provocava aquilo tudo, e ainda é pública.

Esse pequeno complexo também se estendia à minha própria rotina de estudos. Tinha muito medo de não ser capaz de compreender a língua, dos outros não me entenderem ou de passar por alguma situação constrangedora em sala por ser estrangeira. Da mesma forma como pontuei anteriormente, ali também percebi que a qualidade das aulas, dos profissionais e do conteúdo da minha universidade brasileira não deixavam nem um pouco a desejar.

Consegui acompanhar as aulas tranquilamente e realizar meus trabalhos da melhor forma que pude, inclusive indo muito bem em algumas disciplinas e isso, mais uma vez, abriu meus olhos para o aprendizado, para ter um olhar mais introspectivo e parar de valorizar apenas o outro. De forma alguma quero diminuir a universidade que tanto me acolheu na Espanha ou estabelecer alguma hierarquia entre as duas, mas é fato que essa vivência me ajudou a valorizar mais muitas coisas que eu já possuía e acredito que é importante desenvolvermos essa percepção.

De toda forma, algumas diferenças eram sim perceptíveis e bem relevantes. Em primeiro lugar, percebi que, no curso em que estava matriculada, o número de alunos era muito menor. Conversando com outras colegas, sei que não era assim em todos os cursos, porém nas disciplinas que cursei havia em média 15 alunos por turma, ou menos. Isso foi muito positivo pois, principalmente enquanto estrangeira, me ajudou a sentir mais espaço para me tornar colaborativa nas aulas, era possível manter boas discussões e diálogos.

Além disso, vi diferenças nas próprias disciplinas que realizava e na estruturação dos cursos. Já no Brasil, no meu momento de pesquisa sobre quais disciplinas iria realizar, pude perceber que o intercâmbio era uma grande oportunidade de complementar minha formação com disciplinas que não são ofertadas pelo meu curso na UFF. Assim, escolhi duas matérias que se encaixavam neste parâmetro, Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento e Filosofia Islâmica. Realizei, além disso, a disciplina Geografia Econômica, que mesclava algumas questões que eu já havia estudado no Brasil com questões mais atuais e foi bem interessante.

Em especial com a disciplina sobre Filosofia Islâmica, fui imersa na origem dessa religião e nas principais questões que a envolvem histórica e atualmente. Vejo essa experiência como enriquecedora e essencial para minha formação em Relações Internacionais, pois me ensinou de maneira profunda sobre uma religião que eu não tive muito contato durante minha formação pessoal e que é extremamente estigmatizada no Ocidente. Isso foi muito relevante porque o meu campo de estudo ainda é muito voltado à Europa e aos Estados Unidos, assim, o intercâmbio me proporcionou uma importante expansão de conhecimento sobre temas que são extremamente relevantes às R.I.s mas ainda pouco abordados por aqui.

Ainda sobre as aulas, embora em relação ao conteúdo e à forma de apresentá-lo não tenha sentido tanta diferença, o cotidiano universitário me impactou. Uma questão completamente diferente do que vivencio no Brasil, é o fato de que lá somente há avaliações no final do semestre. Isso exigiu uma forma diferente de lidar com minha rotina de estudos, exigiu muito controle, pois era cansativo aguardar somente o final do semestre para ser avaliada e era necessário tomar cuidado para não adiar minhas obrigações demasiadamente.

Acredito que essa estrutura colocava uma pressão muito grande pois haveria muito conteúdo a ser estudado para as provas. Particularmente, prefiro a forma como fazemos no Brasil, na qual há pelo menos duas avaliações no semestre. Penso que dessa maneira é mais justo com o estudante, mas pode ser que minha opinião seja influenciada pelo hábito. De toda maneira, por conta desse diferente esquema, havia aproximadamente uma semana entre o fim das aulas e a data das provas de fato sem nenhuma atividade, apenas para estudarmos.

Um ponto que julguei muito positivo, no entanto, sobre a estruturação da rotina acadêmica por lá, eram os horários fixos que havia de atendimento do professor para os alunos. Desde o começo do semestre, era possível saber uma sala e horário em que os alunos da disciplina poderiam consultar os professores sobre dúvidas acerca da matéria e achei isso bem relevante e colaborativo com os estudantes.

Além disso, houve um impacto muito grande, também, por causa do horário das aulas, estudar de manhã, aqui no Brasil, e na Europa, no inverno, são situações bem diferentes. Enquanto acordo, tomo banho, faço meu café da manhã e chego à aula às 7h; por lá, minha primeira aula era às 8h e era impossível acordar. Modificar essa rotina foi bem difícil e tive que fazer algumas adaptações, principalmente com as minhas refeições, mas por fim, tudo se ajustou.

Porém, as aulas no escuro e no frio, parecendo que ainda era noite, foram só uma parte dos impactos do horário espanhol no meu cotidiano. Na Espanha, há um costume chamado siesta, que embora não se veja tanto como turista nos grandes centros, a exemplo de Madri e Barcelona, é bem perceptível vivendo em uma cidade menor como Salamanca. De 14h às 17h, o comércio da cidade fecha, apenas as maiores lojas de grandes redes como lojas de departamento internacionais permanecem abertas, mas todo o comércio menor e até cafeterias, restaurantes não abrem e não abrem mesmo.

Isso dificultava a resolução de algumas situações, principal- mente na primeira semana quando ainda não estava habituada e tinha muitos afazeres burocráticos. Por exemplo, em um dia precisava tirar fotos 3×4 e fazer algumas cópias de documentos e entreguei tudo bem perto do prazo, pois em mais de um dia esquecia dessa questão da siesta. Para além desse costume, eles possuem horários comerciais diferentes dos nossos.

Havia um banco em que deveríamos fazer nossa carteirinha de estudante que abria de 10h às 14h e, por vezes, amigas minhas chegaram pouco tempo antes de se encerrarem as atividades do dia e não puderam ser atendidas. Essa carteirinha ainda deveria ser feita em uma unidade específica do banco, o que para alguns se tornava um obstáculo já que por vezes o campus em que estudava era mais afastado. Isso me demonstrou uma diferença bem grande cultural porque aqui há muito mais flexibilidade para lidar com certas situações.

Salamanca também me proporcionou conhecer muito sobre outros países, não apenas sobre a Espanha. A universidade recebe muitos intercambistas, todos os anos, por ser bastante conhecida. Além disso, estando na Europa, lá há o programa Erasmus que facilita muito a mobilidade internacional entre os estudantes, contribuindo para esse grande número de intercambistas. Mesmo sem fazer parte do Erasmus, a universidade me incluiu em todas as atividades preparadas para a recepção dos estudantes do programa. Então tive acesso a reuniões de recepção e várias informações que facilitaram minha chegada, além de conhecer bastante gente. Gosto de conhecer novas culturas e, por isso, ter contato com estudantes do mundo todo foi bem especial.

Em relação até ao estudo da língua espanhola, senti que essa multiculturalidade, ali presente, me proporcionou aperfeiçoar meus conhecimentos. Tive contato com nativos de diversos países cuja língua oficial é o espanhol e seus diferentes sotaques. Além disso, conheci também estrangeiros de outros países que não falavam o espanhol como língua materna, assim como eu, me ajudando a desenvolver essa habilidade sem ser com o espanhol perfeitamente pronunciado e gramaticalmente correto como temos acesso em aulas formais de aprendizado de idioma.

Sinto que adquiri uma fluidez ao me comunicar no idioma que foi bem importante e certamente, como futura internacionalista, acrescentou bastante para minha entrada ao mercado de trabalho. Um ponto muito positivo do intercâmbio é que o desenvolvimento dessas habilidades ocorre de maneira natural devido à rotina que você é exposto, o que se torna uma forma muito agradável de aprendizado e às vezes até imperceptível.

Estando na Espanha, tive mais oportunidades de contato com essa multiculturalidade pela facilidade de mobilidade na Europa, que me proporcionou pequenas viagens. Comecei a passear, o quanto antes, buscando todas as promoções em aplicativos de ônibus, avião, trem, etc., e felizmente consegui conhecer outros países. Contudo, justamente em uma dessas viagens, para Berlim, a pandemia se alastrou e os casos na Europa começaram a subir muito rápido. Olhando para trás, penso que tudo aconteceu de uma forma bem inesperada e de um dia para outro deixei de fazer aglomerações, em pontos turísticos, para me deparar com todas as atrações históricas e culturais fechadas.

Para meu desespero, enquanto estava lá, recebi a notícia de que a Espanha fecharia suas fronteiras, exatamente no dia em que eu iria voltar. Assim, corri para tentar modificar minha passagem e retornar o quanto antes a Salamanca.

Comecei a receber vídeos de prateleiras de mercado vazias e pessoas desesperadas comprando tudo o que podiam, um caos estabelecido. Ao chegar à cidade, já não havia mais circulação de transporte público e fui andando da estação de ônibus até minha casa e a cidade estava completamente silenciosa e vazia.

A partir dali, uma nova fase de aprendizado surgiu pra mim, pois não somente estava vivendo em outro país, mas estava vivendo uma crise de saúde mundial, em outro país. Naquela época, inclusive, a Espanha era o segundo país com mais casos na Europa, que se tornava o segundo epicentro da doença. De uma hora para outra, deparamo-nos com uma quarentena total na qual, apenas, andávamos 200m até o mercado mais próximo para comprar o necessário.

Acompanhar esse cenário caótico presencialmente na Espanha e virtualmente no Brasil, pelo que me era relatado, foi uma experiência bem diferente. Ver como cada país se portou perante a situação, acompanhar as medidas que estavam sendo tomadas e a forma como a população as recebia e agia deixavam minha cabeça com um turbilhão de informações e pensamentos. Como estudante de Relações Internacionais, parecia que eu estava vivenciando uma matéria da faculdade. Não vou, é claro, dizer que a pandemia foi algo bom e proferir um discurso positivo perante o horror que ela causou, mas não posso negar que do ponto de vista da minha formação foi interessante poder ter acesso a essas duas perspectivas.

Um dos meus maiores choques culturais foi com a própria universidade. Ao mesmo passo que acompanhava as medidas da Universidade de Salamanca para finalizar o semestre que estava em andamento, no Brasil as aulas ainda iriam começar, então por meio de grupos e redes sociais tomava ciência do adiamento das aulas na UFF. Algo que me assustou foi o fato de que a universidade de lá simplesmente decidiu que as aulas seriam on-line e ponto final, enquanto numa universidade da magnitude da UFF seria impossível tomar essa medida.

Muitas discussões surgiram na comunidade acadêmica aqui no Brasil, principalmente se tratando de universidades públicas, acerca do acesso de muitos estudantes aos meios digitais, algo que não vi ocorrer da mesma forma por lá. Posso estar equivocada, mas senti que as discussões sociais por parte dos alunos não eram tão fortes e fiquei frustrada pois era um momento que exigia muita sensibilidade.

Uma das piores partes de viver a pandemia no meio do intercâmbio foi não poder me despedir de muitas pessoas que conheci e não ter vivido mais momentos com essas pessoas. Não tive muito tempo para conhecer a todos de maneira profunda, mas justamente isso deixou uma sensação de vazio pelas expectativas de como poderia ter sido desenvolver mais algumas amizades. Infelizmente como muitos eram de países europeus, simplesmente voltaram para suas casas na expectativa de que o isolamento iria durar apenas 15 dias e depois poderíamos nos rever, o que não ocorreu.

Porém, ao mesmo tempo que não pude concretizar algumas relações, o fato de viver uma situação tão extrema fortaleceu bastante minha amizade com quem também permaneceu por lá, em especial com as outras meninas que moravam comigo. Embora estivéssemos convivendo bem desde o primeiro dia, foi esse momento que criou uma amizade, para mim, inquebrável. Tivemos de nos expor, abrir nossas preocupações umas às outras e nos confortamos inúmeras vezes, além de passarmos literalmente o tempo todo juntas, criando a necessidade de uma ótima dinâmica de convivência.

Não digo que foi tudo perfeito, pois afinal, sempre temos alguns embates com algo relacionado à casa ou algum dia em que não estamos bem, mas vejo que dentro das nossas capacidades fomos muito parceiras. Mesmo que cada uma tivesse sua família e amigos no Brasil, o fuso horário também limitava um pouco nossa comunicação com essas pessoas, corroborando para que ainda mais fossemos necessárias umas às outras.

Além das meninas que moravam comigo, contei muito com o suporte de outras amigas brasileiras que também permaneceram em Salamanca até conseguir o melhor momento para retornar ao Brasil. Mesmo com cada uma em sua casa, ao menos estávamos vivendo as mesmas situações, algo que não compartilhávamos com os amigos daqui por completo, por isso penso que desenvolvemos também uma forte amizade e mantemos essa relação até hoje.

Um momento muito especial foi o feriado da Páscoa, no qual, antes do lockdown, muitas planejavam viajar já que não teríamos aulas por alguns dias. Todas recebemos mensagens de cancelamento de passagens e reservas e nos encontrávamos em um dos momentos mais críticos da pandemia por lá , ouvindo barulhos de ambulâncias pelas ruas e acompanhando o grande aumento de casos e mortes por Covid-19. Para muitos, esse feriado era também importante por motivos religiosos e passar longe da família era algo muito triste. Assim, nos esforçamos e decidimos fazer um amigo oculto do apartamento e durante a semana cada uma foi ao mercado comprar seu presente.

No dia, além de trocarmos as barrinhas de chocolate que conseguimos comprar, cozinhamos uma refeição bem farta e planejada e nos divertimos bastante tentando comemorar a data. Nas casas de nossas outras amigas, eventos semelhantes também ocorreram e virtualmente nos comunicávamos e parecia que estávamos todas almoçando e comemorando juntas. Embora tenha sido criada no Catolicismo, hoje não sou adepta a essa fé, porém entendi a importância desse momento para minhas colegas e foi muito emocionante nos apoiarmos daquela forma.

Os meses se seguiram com um dia mais único do que o outro. Havia dias de faxina com muita música, dias de comprar vinhos no mercado e jogar conversa fora até de madrugada, dia de cozinharmos algo diferente, todos com muita parceria. Com as dificuldades e inseguranças ao comprar uma passagem para voltar ao Brasil, aguardamos o momento mais adequado, e essa espera contribuiu para que conseguíssemos vivenciar os inícios da reabertura do lockdown e pudéssemos caminhar novamente pelas ruas e ao menos nos ver, ainda que distantes e com máscaras. Para mim, isso foi muito importante, pois proporcionou momentos de despedida que não pude ter com as outras amizades que fiz.

Lembro que um dos principais choques que eu tive, ao sair pela primeira vez pelas ruas novamente, foi com a paisagem natural. Diferente daqui no Brasil, lá as estações do ano são bem marcadas e estando na primavera estava tudo bem florido. Foi uma experiência bem curiosa pois antes do lockdown eu estava morrendo de frio, usando casacos grandes, botas, calças térmicas por baixo da roupa e, quando estava indo para minha aula que começava 8h, tudo estava escuro e a rua vazia. Nesse dia, saí apenas de jeans, com uma blusa fresca e chinelos e o dia estava bem ensolarado. Naquele momento, também descobri que os europeus acham um pouco estranha a forma como usamos chinelos toda vez que podemos usá-los, pois os olhares não disfarçavam.

Outro dia bem marcante foi quando comemoramos o aniversário de uma amiga, antes de retornarmos ao Brasil. Naquele momento, eram permitidos encontros de dez pessoas dentro de um ambiente, então nos reunimos para comer um bolo juntas. Porém, havia horários de circulação na cidade separados por idade, então tivemos que esperar até às 7h da manhã do dia seguinte, para podermos retornar às nossas respectivas casas.

Retornando para casa, eu e uma das meninas que moravam comigo, decidimos comprar um café, numa padaria da rua, e foi muito curiosa a forma como uma situação tão simples me deixou tão feliz, depois de meses em completo isolamento. É claro que não voltamos a viver como antes, nem tomamos o café na própria padaria, apenas o compramos e bebemos na rua, mas valorizei bastante aquele ato simples e aquele momento com a minha amiga.

Muitos momentos especiais se passaram e com certeza as pessoas que estavam comigo foram as maiores responsáveis por isso, mas enfim chegou o momento de retornar ao Brasil. Meses antes, quando a pandemia havia começado a se alastrar, os consulados brasileiros de diversos países começaram a realizar voos de repatriação, e eu, assim como outras amigas, me inscrevi no formulário solicitando vaga em um deles. Na época, não conseguimos, pois havia outros brasileiros solicitantes com maior prioridade, porém nossos nomes foram arquivados em uma lista de espera e conseguimos ser alocadas no segundo voo de repatriação saindo de Madri.

Perguntaram-nos se desejávamos ou não retornar neste voo e a verdade é que essa foi uma decisão muito difícil, porque não estávamos preparadas para nos despedir da cidade, da universidade e umas das outras. Havia pouco tempo entre a ligação e a data do voo, mas por fim aceitamos, afinal, muitas de nós estavam com seus voos originais cancelados e os preços, que se encontravam para adquirir passagens em voos comerciais, eram muito caros. Assim, começamos nossas intermináveis despedidas de cada espaço que foi tão importante para nós naqueles meses.

Para mim, o retorno se tornou especialmente difícil, pois as meninas que moravam comigo não iriam retornar neste voo e me separar das pessoas com as quais convivi nos últimos meses foi bem marcante. Eu e demais amigas, então, entramos em uma saga de meios de transporte até chegarmos ao aeroporto Madri-Barajas. Primeiro, entramos em um ônibus de Salamanca à cidade de Madri. Normalmente, havia uma linha direta ao aeroporto, mas devido à pandemia, apenas uma linha estava funcionando que parava em uma rodoviária da cidade.

A partir dali, começamos a conversar sobre as possibilidades, afinal, estávamos com muitas malas grandes, pesadas e fazia calor. Decidimos ir em um trem que levava diretamente ao aeroporto e que possuía uma conexão com a estação onde estávamos. Quando o trem chegou, havia um enorme degrau para subirmos com todas as bagagens pesadas e isso precisava ser feito bem rápido, então, o desespero logo se instaurou e quando vimos estávamos jogando as malas dentro do trem. Nenhuma pessoa se ofereceu para nos ajudar mesmo observando nossa dificuldade, mas conseguimos entrar e colocar todas as nossas bagagens.

Chegando ao aeroporto, tivemos que apresentar uma autorização emitida pelo consulado justificando nosso voo, e quando conseguimos entrar, estava completamente vazio. Todas as lojas e restaurantes fechados e quase nenhum voo saindo ou chegando. Recebemos um kit do consulado com máscaras, álcool gel, água e um lanche e ali aguardamos nosso voo. Quando entramos no avião, basicamente não havia jantar, apenas biscoitos e alguns pedaços de queijo e presunto, então chegamos ao Brasil com muita fome. A essa altura, também já havíamos trocado de máscara inúmeras vezes pois estávamos há horas tendo que utilizá-las.

O voo somente nos levava até Guarulhos e, a partir dali, deveríamos chegar aos nossos destinos de maneira independente do consulado e cada uma de nós morava em uma parte diferente do Brasil. Após fazer todo o trajeto juntas, somente nos demos conta de que aquela era a última vez que nos veríamos por tempo indeterminado quando a primeira de nós se despediu. Ela já vivia em São Paulo então não precisaria fazer mais nenhuma viagem. Assim, uma por uma fomos nos despedindo e aquele foi o fim de umas das minhas vivências mais marcantes até então.

Pessoalmente, foi muito difícil aceitar que a minha experiência de intercâmbio tinha que ter sido justamente durante uma pandemia. Porém, logo aceitei essa condição e entendi que o meu “sofrimento” era muito pequeno comparado ao momento difícil que diversas pessoas estavam vivenciando, com familiares doentes e falecimento de pessoas próximas, algo que eu infelizmente também vivenciei depois.

Assim, acredito que um grande desenvolvimento pessoal meu foi aprender a lidar com as frustrações e entender que nem tudo está no nosso controle. Essa mudança foi talvez a mais impactante por contrapor características tão marcantes da minha personalidade, e por isso sei que ela vai alterar completamente a forma como lido com meu futuro, seja ele pessoal, acadêmico ou profissional. Sempre me disseram que o intercâmbio era uma experiência única, e certamente foi, talvez não dentro das minhas expectativas, mas surpreendente e certamente agregadora.

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