Um lar entre as muralhas
Arthur Luiz de Oliveira AmorimGraduado em Engenharia de Recursos Hídricos e do Meio Ambiente pela UFF.
Foi intercambista na Universidade de Évora (Portugal) em 2018.
O ano era 2018. O mês, fevereiro. Estávamos no auge de um típico verão carioca, daqueles com muito sol, água, areia, sal e carnaval, e a ideia de deixar esse cenário para, depois de um longo voo de onze horas, encarar um frio inverno europeu não parecia muito apetitosa. Felizmente, a euforia de conhecer o Velho Continente ecoava dentro de mim há meses, o que fez ser fácil embarcar no avião, mesmo com as lágrimas das despedidas. Seria minha primeira viagem para além de terras tupiniquins e, ainda que muito bem nutrido com histórias, filmes e fotografias, eu não fazia a menor ideia do que encontraria ao chegar. Mas é assim que as grandes aventuras começam, não?
Desembarcar foi um alívio. Após vistos atrasados, cartas com demora no aceite e passagens trocadas, pisar em solo português me fez sentir como Odisseu em seu retorno. Para a minha sorte, ao contrário do rei de Ítaca, a minha jornada estava apenas dando o primeiro passo. Então, segui. Depois de poucos minutos em Lisboa, tomei o ônibus com o destino para Évora, cidade que eu chamaria de lar pelos próximos meses.
Chegando, fui recepcionado pela representante dos intercambistas da universidade, que me ajudou com as malas e me deu uma carona até o apartamento que eu tinha escolhido para morar. Como a viagem foi rápida, meu primeiro vislumbre de Évora, ao sair do carro, foi aquela fachada branca e caramelo na Rua dos Freguises, número 2, com alguns detalhes geométricos e um magnífico mármore cinza, que enfeitava uma lustrosa porta em alumínio de coloração verde musgo. Mas Évora ia muito além daquele singelo prédio de três andares.
As primeiras semanas foram de pura descoberta. Era como se eu fosse uma criança em sua primeira visita a um parque de diversões, onde tudo me causava uma excitação descomunal, um desejo de experimentação, mas sempre acompanhados de um certo frio na barriga, e eu ficava intimidado para dar qualquer passo. Ainda que completamente fora da minha zona de conforto, não tive muitas dificuldades nos afazeres cotidianos. Mercados, restaurantes, bares, bancos e papeladas administrativas foram questões simples de resolver, mesmo com algumas desavenças na língua. Mas existia um incômodo diário com o qual até hoje não consegui me acostumar. O frio.
Não é como se houvesse nevascas, congelamento da água encanada ou qualquer outro cenário apocalíptico. Na verdade, a maioria teria achado um inverno gentil. Talvez tenha sido a diferença brusca e repentina. Não sei explicar o porquê. Mas foi cruel. Em Évora, a maioria das casas não possuía aquecedor na sua instalação, e um portátil não entrava no orçamento, além de ser pouco eficiente para um apartamento de três quartos. Também não sei se isso resolveria de fato o problema. A temperatura mais baixa que enfrentei foi zero graus. Negativa, só a sensação térmica. Estava bem equipado, com roupas adequadas, não passei dificuldades por isso. Mas não importa quão bem agasalhado se esteja, o inverno mexe com a gente por dentro. A dinâmica era diferente. As pessoas, mais frias, enquanto a cidade parecia que tinha alguma coisa morta em sua essência. Até as árvores tinham um aspecto fúnebre, sem folhas, flores ou cores. E parecia que todos sentiam isso de certa forma, porque muitos falavam que, no desabrochar da primavera, as coisas seriam diferentes.
É claro que eu não ficaria esperando a mudança de estação, então fui explorar Évora mesmo com aquele cenário que me amedrontava um pouco. A cidade era linda. Uma beleza muito distante dos paraísos tropicais por onde eu já tinha passado, uma beleza mais sentida do que vista. Caminhar pelas suas ruas era como mergulhar em um livro de história medieval. O chão era todo em paralelepípedo, as casas bem próximas, todas com fachadas em amarelo e branco, havia uma praça principal onde todos os eventos ocorriam e, para coroar, no ponto mais alto, estavam a catedral e o palácio, que observam e tomam conta de tudo que pudesse acontecer. Entretanto, o que mais me chamou atenção foram as muralhas que cercavam a cidade. Diferente de grades de condomínios, onde muitas vezes elas existem apenas para excluir, as muralhas de Évora traziam uma sensação de segurança e conforto ímpar ao adentrarmos a fortaleza. Era como se todo o incômodo e medo, que aquele frio me trazia, simplesmente desaparecessem quando eu recebia o abraço daqueles muros de pedra.
Apesar da paisagem medieval conservada, o grande ponto turístico de Évora era um templo de origem romana, que surgiu muito antes de reis portugueses governarem por aquelas terras. Há lendas que dizem que era dedicado à Diana, deusa da caça, mas ninguém nunca confirmou essa história. Hoje, o único culto que ali acontece é o de universitários que se reúnem ao seu redor para beber vinhos e cervejas, brindar à vida e aproveitar a juventude.
Entre suas ruas e estruturas medievais, no antigo quartel general da cidade, ficava o Colégio Luís António Verney, lar da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora. Lá foi onde tive todas as minhas aulas enquanto aluno do curso de Ecologia e Ambiente. Minha relação com o curso foi um pouco diferente do que eu já havia experienciado no Brasil. Era um curso bastante novo, com apenas duas turmas, nenhuma ainda formada, e com pouquíssimos alunos. O resultado disso foi uma organização que trouxe conforto e me fez sentir em família. Da coordenação às alunas, fui carinhosamente acolhido e possuo grandes amizades até hoje. Por ser um curso pequeno, o sentimento de comunidade era constante, então era comum que estivéssemos todos juntos ao fim de tarde, fosse para um lanche após as aulas ou para organizarmos festivais de música e sustentabilidade.
No quesito acadêmico, também pude notar algumas diferenças. As salas de aulas eram bem pequenas e as turmas tinham em torno de seis alunos cada. Por um lado, era ótimo, pois tornava o professor mais acessível, bem como os alunos tinham mais força ao definir o ritmo das aulas, o que facilitava o aprendizado, mas também colocava um pouco de responsabilidade nos alunos na condução da aula, o que podia causar alguma lentidão algumas vezes. Das cinco cadeiras que lá cursei, muitos foram os aprendizados acadêmicos e pessoais que adquiri. É claro que eu já esperava coisas novas, como aprenderia em qualquer curso universitário, mas estudar em Évora me fez mudar minha ótica sobre o mundo. Diferente do que ocorre na Engenharia, pude ter contato com uma visão mais comutativa do homem com o ambiente, não havendo separação entre os meios, e isso foi o que mais me acrescentou na formação como engenheiro ambiental. Além disso, como as disciplinas eram focadas no território português, foi interessante perceber como as dinâmicas mudam conforme o ambiente e as culturas mudam. Eu já tinha uma ideia de que isso ocorria, mas ver na prática me fez entender quais os mecanismos afetados.
À medida que a primavera chegava, a dinâmica das aulas mudava. Começaram a ser possíveis as visitas técnicas, o campus mais bonito e com pavões a circular nos fazia passar mais tempo na universidade e as integrações entre os alunos pareciam mais frequentes. Além disso, todos pareciam mais animados, com mais vontade de aprender e ensinar, o que fortaleceu bastante o aprendizado. Também foi com a mudança de estação que tive a oportunidade de me envolver em atividades extracurriculares, que foram: o EcoVerney e o 2º Congresso Internacional de Redes Sociais (CIReS).
O primeiro foi um projeto de extensão ligado ao meu curso, onde os alunos, juntamente com os professores, difundiam saberes ambientais através da arte pela Escola de Ciências e Tecnologia. Recheado de música, intervenções artísticas, união e harmonia, o EcoVerney também era uma espécie de celebração da primavera e um momento de descontração da vida acadêmica. Foi um evento mágico, que me fez sair da bolha do curso de Ecologia e Ambiente e aprender melhor sobre os alunos da Universidade de Évora. Além disso, o contato constante com artes causou uma profunda transformação em mim e, se hoje eu dedico muito do meu tempo ao assunto, seja aprendendo fotografia ou estudando arte como hobbies, eu certamente o faço por conta do período que vivi em Évora.
Já o CIReS foi um congresso onde fui voluntário na parte de organização e logística. Aprendi muito, em um universo completamente distante da minha formação, mas o mais marcante foi o tradicional jantar português que nos foi oferecido. Aconteceu em um enorme salão, com as luzes baixas e de cor quente, e velas às mesas. No cardápio, alguns dos pratos portugueses de maior prestígio, acompanhados de vinho que harmonizava e de qualidade impecável. Para completar o espetáculo, apresentação de músicas tradicionais portuguesas, por uma cantora de fado e depois, uma violinista. Uma noite memorável que me fez perceber a verdadeira hospitalidade dos portugueses.
Um pouco distante do academicismo, mas ainda ligada à Universidade de Évora, existia a comunidade de estudantes intercambistas, a ERASMUS. A ERASMUS tinha a responsabilidade de nos acolher e acompanhar durante o período de intercâmbio, promovendo ações de integração, troca cultural e descoberta da cultura portuguesa. Foram incontáveis os eventos criados por eles, desde viagens, festas até jantares e pequenas reuniões. Em cada ocasião, os laços e amizades se fortaleciam e viver em Évora se tornava cada vez mais agradável. O mais incrível de participar deste ciclo foi a descoberta das mais variadas culturas europeias existentes. Franceses, bielorrussas, espanhóis, búlgaros, romenos… Todos tinham histórias diferentes para contar, cada um com sua própria perspectiva de mundo, e navegar por essas histórias de óticas tão distintas e distantes me fez querer conhecer mais do mundo e experimentar as mais variadas culturas.
Dos diversos encontros que ocorreram, devo destacar o primeiro dia da semana de acolhimento. O evento começou com uma espetacular visita à sede da vinícola principal da cidade. Lá, tivemos a oportunidade de degustar diversos vinhos locais, entender a quais ocasiões cada um deles se adequava e tivemos também a chance de conhecer um pouco sobre o processo de produção da região. Após uma fartura dos mais variados vinhos e alguns lanches, fomos nos juntar aos alunos portugueses para uma apresentação das Tunas. As Tunas são grupos de alunos, uma espécie de coral das universidades portuguesas. Os grupos podem ser masculinos, femininos ou mistos e o espetáculo sempre nos conecta com o passado e o presente da organização. São músicas tradicionais portuguesas, odes a Évora, canções mais novas que retratam o cotidiano universitário e até um pouco de samba e bossa nova, ritmos admirados no país. As melodias são acompanhadas de danças energéticas, coordenadas e com uma coreografia impossível de se encontrar em outro lugar. As Tunas se apresentaram diversas vezes durante minha estada em Évora, mas a primeira delas foi emocionante e inesquecível.
A ERASMUS também nos proporcionou diversas viagens às mais variadas cidades no país, grandes ou pequenas, em visitas guiadas para que embarcássemos na rica história de Portugal, ao longo do semestre. Através destes passeios, pude perceber que a pluralidade de Portugal é tamanha, que fica difícil de acreditar que tal dimensão cultural possa caber em um pequeno território. Subimos ao gelo da Serra da Estrela, bebemos vinho no Porto, andamos de bonde em Lisboa, velejamos pelos canais de Aveiro, rezamos em Fátima, tomamos sol nas belas praias do Algarve, ouvimos bravuras sobre Batalha e Tomar e apreciamos a majestosa Universidade de Coimbra. Em cada um dos cantos, um novo Portugal se apresentava, e cada vez mais eu me encantava com aquele país.
Fazer parte da comunidade ERASMUS não se resumia a festas, viagens e jantares. Éramos integrantes da agremiação estudantil e desempenhávamos um importante papel na política da universidade. Em especial, houve uma situação em que nossa participação foi crucial para a tomada de decisão no campus. Estávamos chegando ao fim do semestre, época em que aconteciam as garraiadas em algumas universidades, e na Universidade de Évora estava em pauta se a atividade aconteceria ou não naquele ano. A garraiada é um evento que se assemelha à tradicional tourada espanhola, mas de maneira menos cruel. Na modalidade portuguesa, os touros ainda não são adultos, e não há o abate no final do espetáculo. Entretanto, o animal é atiçado, de modo que deve combater homens na arena, que o machucam, quebram seu rabo, enquanto pessoas na plateia atiram objetos no pobre bezerro. Devido à tamanha barbaridade, a cerimônia tem sido combatida em Portugal, e Évora estava dizendo não à prática, por meio de plebiscito. Para a votação, a comunidade ERASMUS se organizou para que fôssemos em peso votar contra a continuação das garraiadas, o que causou desconforto nos alunos portugueses mais conservadores. Ao fim da votação, com a vitória pelo término destes eventos, alguns destes alunos subiram ao palco do auditório para proferir discursos inflamados, de cunho xenofóbico, alegando que os alunos internacionais estavam interferindo diretamente em suas manifestações culturais. Apesar de ter sido uma cena triste de se presenciar, eu tenho orgulho de ter feito parte deste momento histórico na cidade de Évora.
Por mais que eu tenha passado a maior parte do meu tempo na vida acadêmica ou intercambista, viver fora do meu país não se resumiu a isso. O cotidiano também era cheio de novidades. A cada ida ao mercado, uma nova iguaria portuguesa era garantida para aventuras na cozinha, e em todo lugar que eu ia, aprendia palavras novas do português europeu. Também criamos um hábito no nosso apartamento, algo que eu nunca havia imaginado viver. Decidimos nos inscrever em um aplicativo chamado couchsurfing, que consiste em deixar um lugar vago na sua casa – no nosso caso, o sofá – para receber estranhos que estivessem de passagem em sua cidade. Foram muitas as visitas que recebemos, com as mais variadas pessoas, vindas dos mais variados lugares. Algumas permaneciam por uma ou duas noites, outras passavam semanas, mas todas conferiam à casa uma energia única, tornando o momento sempre especial. Portugueses, vietnamitas, turcos, austríacos. Todos chegavam com muita alegria, histórias, ensinamentos e, é claro, um prato típico de sua região. Em troca, entregávamos conforto, companhia e servíamos de guias em Évora, e acabava que sempre chegávamos em um lugar desconhecido por nós mesmos!
Chegando ao fim do semestre, os exames estavam cada vez mais próximos e seria uma nova experiência acadêmica pra mim. A grande diferença entre os exames no sistema português e as provas à moda brasileira é que, no sistema português, elas ocorrem todas aglutinadas em um curto pequeno de tempo, geralmente com toda a matéria acumulada do semestre inteiro. Bem, se, durante o período letivo, não me foi exigido muito esforço, a última caminhada causou um alvoroço total, um caos. Confesso que foi um pouco confuso, ainda mais que, além dos exames finais, muitos relatórios também tinham seus prazos para a mesma época, e pode ser fácil esquecer um prazo ou outro. No fim, mesmo com o choque que levei, consegui ir bem e triunfar nas cadeiras cursadas.
Junto ao término das aulas, a cidade entra em euforia com os preparativos para a Queima das Fitas. A Queima é a tradicional cerimônia portuguesa de encerramento do ano letivo, que ocorre apenas em julho, e serve como um ritual de formatura para os veteranos. A comemoração consiste na queima de pequenas fitas pelos concluintes, em suas requintadas túnicas universitárias, seguido por um mergulho na fonte da universidade. É uma cerimônia emocionante, com muitos abraços, amor e carinho, e foi lindo ter participado disso. Além disso, a Queima também possui um lado mais informal. Antes da cerimônia principal, que ocorre à noite, o dia que se passa é uma grande festa. Desde a manhã, a rua principal da cidade dá lugar a um enorme desfile de carrinhas, que são carros decorados, um para cada curso da Universidade de Évora. Os carros são munidos de muita bebida alcoólica e universitários de todos os períodos, se divertindo em um verdadeiro carnaval fora de época. Inclusive, na cidade de Évora, existe um bloco de carnaval composto pelos alunos brasileiros – o qual eu participei dos ensaios – para fazer parte desta grande festa. Depois do fim da cerimônia principal, temos os dias seguintes onde a cidade vira palco de um grande festival de música, com muitos DJs, artistas e alegorias, e por uma semana os estudantes se divertem para esquecer as dores dos exames finais.
Em alguns meses morando em Évora, descobri que a cidade é viva e mutável. No início, quando o frio estava no seu ápice, a cidade pareceu dura, ríspida, mas conforme os meses foram passando, assim como haviam me alertado, tudo mudou. O cinza das árvores se transformou em um show de cores e aromas, as ruas vazias se tornaram movimentadas e os jardins floresceram, com seus pavões a andar no gramado e patos a nadar no lago. O que antes parecia uma cidade quieta e tímida deu lugar a um lugar que exalava alegria e festividade. Feiras medievais, festivais de cinema, feiras gastronômicas e eventos de música foram algumas das muitas atrações que ocorriam constantemente na cidade, então todo fim de semana eu vivi um cenário diferente.
Estar em um lugar regido por mudanças me fez refletir sobre os mais diversos aspectos da minha vida, ao mesmo tempo em que eu crescia com as experiências. No âmbito acadêmico, uma forma de educação diferente daquilo que eu estou acostumado me abriu os olhos para novas possibilidades dentro da minha própria área de atuação e me fez tornar um profissional mais completo. Apesar de um semestre não ter sido o suficiente para absorver todo o conhecimento que eu gostaria, a minha forma de pensar e encarar a realidade mudou de tal maneira que até conhecimentos antigos ganharam um novo significado. Do ponto de vista pessoal, incorporei novas culturas, e me sinto uma pessoa mais rica por isso. O crescimento que eu tive durante minha estada em Évora foi sem precedentes e, até hoje, parte dessa cidade vive em mim e molda o indivíduo que eu sou. No mais, me restam memórias de um tempo em que, mesmo longe da minha terra natal, fui capaz de encontrar um lar dentro dos abraços apertados daquelas muralhas.