Sanduíche italiano: saborosa mistura de experiências pessoais, investigações acadêmicas e novas perspectivas sobre o patrimônio urbano

Carina Mendes dos Santos Melo

Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFF.

Realizou doutorado-sanduíche na Università degli Studi di Napoli – Federico II (Itália) em 2018.

Podemos dizer, em linhas gerais, que cultura é o conjunto de aspectos do comportamento humano que nos caracteriza e nos afilia a um determinado grupo. Ao mesmo tempo que nos distingue, nos une. Ao mesmo tempo que nos afasta, nos aproxima. Entender outra cultura por meio de livros, relatos, fotos e vídeos não nos dá a dimensão deste conjunto de características que dizem respeito ao outro. Em geral, para sair do olhar idealizado ou caricaturado de outra cultura é preciso conhecê-la mais a fundo, submergir, vivenciar, experienciar. Hoje, a disponibilidade de acervos digitais, a facilidade de reuniões on-line, a possibilidade de fazer percursos virtuais por cidades em toda parte do mundo pode criar uma visão distorcida de que os intercâmbios estão perdendo espaço, mas acredito que não seja verdade.

Eu estudo e trabalho com o patrimônio cultural. Meu tema, mais especificamente, é o patrimônio urbano, as cidades, seus tempos e espaços. Seus grandes monumentos e suas casinhas, suas amplas avenidas e suas estreitas ruas e vielas, e também suas gentes — moradores, usuários, visitantes — e os valores que se tecem nessa rede de relações. A Itália é mundialmente conhecida pela riqueza de seu acervo patrimonial, pela quantidade e qualidade, pelas suas belas cidades, paisagens, comidas, músicas, e mesmo pelo modo de ser do italiano, expansivo, exagerado e gesticulador. As camadas de história que se sobrepõem e se justapõem em seus tecidos urbanos são um orgulho nacional e um atrativo para turistas de toda parte do mundo. Para aqueles que lidam com o patrimônio cultural, como eu, é comum admirar esta presença e capilaridade do tema no território italiano e querer estudar, compreender melhor as práticas de proteção e conservação naquele país. Afinal, como fazem para preservar tamanho acervo?

Eu trabalho no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), desde 2006, órgão do governo federal responsável pela implementação de políticas públicas voltadas à proteção do patrimônio cultural nacional. Foram as dificuldades e mesmo alguns entraves com os quais me deparei durante meu percurso no IPHAN, que me levaram a fazer o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, UFF, em 2016. Já no início dos meus estudos, ao perscrutar as vulnerabilidades da gestão do patrimônio urbano aqui no Brasil, alimentei a ideia de investigar como eram as práticas de proteção de outros países, e, nesta esteira, especialmente a Itália pareceu-me uma fonte preciosa.

Em minhas primeiras incursões na pesquisa, algumas questões se mostraram primordiais e evidenciaram-se como guias para o estudo do caso italiano. Qual era o histórico da ação de proteção? Que leis serviam de base à atuação? Como era a rotina de funcionamento do órgão de preservação? Quais os impasses que os atores envolvidos na proteção enfrentavam no dia a dia?

A oportunidade de estudar um período no exterior se consolidou em 2018 com uma bolsa do PDSE, Programa de Doutorado-sanduíche no Exterior, da CAPES. Minha primeira proposta era fazer um estudo comparado – Brasil e Itália – talvez investida de um olhar um tanto idealizado, e europeizado, de buscar uma fórmula, encontrar um caminho para nossos problemas espelhado no outro. Essa ideia, contudo, se dissolveria de forma gradativa ao conhecer mais profundamente a realidade italiana, suas instituições, cidades e pessoas.

Meu porto seguro foi a Universidade de Nápoles Federico II (Università degli Studi di Napoli – Federico II), onde fui muito bem acolhida pelo meu supervisor, Prof. Dr. Andrea Pane, que me deu todo o suporte necessário e indicou alguns profícuos caminhos para desenvolver minha pesquisa. Já no primeiro momento, presenteou-me com a participação em um workshop na Ilha de Capri, junto com os alunos do Master em Patrimônio. Foram cinco dias de atividades, em que me integrei aos grupos de desenvolvimento de projetos de restauração para a Certosa de Capri, um monumento belíssimo encravado na paisagem verde e azul da ilha. Desafio pessoal e profissional, fruto da necessidade de elevar um italiano ainda desajeitado e inseguro ao nível de debates acadêmicos e assim contribuir com os trabalhos do grupo.

Aliás, os desafios pessoais e acadêmicos permearam a experiência do começo ao fim. A ida a um arquivo, por exemplo, era sempre uma aventura, desde descobrir como chegar ao prédio até encontrar os documentos desejados. Do deslocar-me na cidade ao localizar-me entre caixas. O mesmo ocorria nas bibliotecas, até que a rotina e a confiança gradualmente conquistadas permitiam sentir-me em casa, por entre as estantes e os livros, os funcionários e os alunos. Nas aulas, uma rede de relações mais pessoais ia se formando pela afinidade e, por vezes, extrapolavam a rotina acadêmica.

As aulas alimentaram tantas outras reflexões. Teve uma em particular que me marcou especialmente, já que tratou de um teórico de restauração que ainda hoje utilizamos como constante referência aqui no Brasil para analisar intervenções em edifícios e mesmo em conjuntos urbanos. Trata-se de Cesare Brandi, teórico que, juntamente com outras figuras expoentes do cenário italiano, ajudou a consolidar a corrente do “restauro científico”. Aqui no Brasil eu tinha acesso ao seu livro fundamental, Teoria da Restauração, traduzido e publicado em 2004, mas com as aulas descobri a existência de outros. Por entre os sebos das vielas de Nápoles pude adquirir alguns deles, o que me forneceu um universo amplo de possibilidades e leituras.

Pelas aulas e bibliotecas, a universidade se tornou meu ponto focal na cidade. A partir dela pude descobrir e vivenciar o tecido urbano que a contornava. Descobrir os cafés, restaurantes e bares que cabiam no meu bolso de estudante, os museus e livrarias que serviam à pausa do almoço, as ruas de comércio e o calçadão à beira-mar que permitiam o passeio noturno para arejar a mente. Estas percepções da cidade e da apropriação dos espaços foram fundamentais para alimentar minhas reflexões da pesquisa, pois era especialmente esse o meu tema de estudo.

Selecionei algumas áreas de Nápoles para me servirem de estudos de caso. Minha análise sobre o patrimônio urbano tinha o propósito de entender as relações que se estabeleciam entre a arquitetura e o tecido urbano em que estava inserida esta arquitetura, para assim refletir sobre os valores patrimoniais que seriam necessários preservar. Transitar por estes espaços, observar os sutis componentes culturais ali presentes, conduziram-me à noção de ambiência. Trata-se de uma forma de abordagem que:

enfatiza a atividade de percepção dos sujeitos e o papel das práticas sociais na concepção sensível do ambiente construído permitindo, dessa forma, que se preste maior atenção às tonalidades afetivas da vida urbana (THIBAUD, 2012, grifos nossos).

Sendo assim, pensava, para além de seu patrimônio construído, o que seria Nápoles sem suas pessoas, cores, sons, cheiros e sabores?[1] Como acabei morando em uma região mais periférica, uma pupila do meu supervisor acolheu-me diversas vezes em sua casa, o que foi uma experiência fantástica. Ela morava no centro histórico de Nápoles, isto é, na parte mais antiga da cidade, próximo também à universidade. Nesta área localizam-se inúmeros equipamentos culturais e artísticos: igrejas, mosteiros, obeliscos, museus etc. E foi transitando por estas ruas que pude melhor compreender o sentido de estratificação histórica a que tantos autores se referiam sobre a conformação das cidades italianas. Entre escavações arqueológicas subterrâneas e ao ar livre, catacumbas e fragmentos de construções medievais, as camadas históricas estão à mostra e dão uma dimensão visível e palpável dos diversos tempos do tecido urbano.
A conformação das principais ruas do centro histórico de Nápoles remonta ainda ao período de dominação grega, muito antes de Cristo. No trecho mais antigo, as construções hoje existentes são o resultado de um acúmulo de séculos e foram erguidas até por volta do século XVI. Muitas eram, originalmente, grandes palacetes da aristocracia napolitana que com o passar dos séculos foram sendo subdivididas, abrigando diversas famílias.

Daria morava em um destes apartamentos de divisão incomum, inserido em um destes antigos palacetes. Entrávamos por uma pequena cozinha/copa; na sequência havia um banheiro confortável com banheira e bidê e depois dois quartos imensos, ligados por um corredor. Mas não só a distribuição dos cômodos chamara minha atenção, também o aspecto de antigo, ou de velho, do apartamento, do prédio, e mesmo de todo o centro histórico, que possui ainda hoje muitos trechos residenciais. Ainda que haja um debate no contexto italiano sobre a falta de conservação do centro histórico de Nápoles, impressionou-me a forma com que os habitantes e os usuários vivenciam e utilizam estas áreas mais antigas da cidade.

Havia uma diferença de postura em relação ao patrimônio. Para nós, brasileiros, a admiração pelo novo é mais presente. Mesmo nos casos de obras de restauração, o processo é considerado bem-sucedido quando a edificação parece renovada, os materiais lisos, tintas brilhantes, sem manchas, marcas, texturas. No caso italiano, a conformação mais antiga das cidades, a capilaridade do tema do patrimônio, presente em toda parte, e uma cultura da preservação já mais internalizada, sedimentaram para mim um entendimento de profunda diferença entre os dois países. Esta percepção afastou-me definitivamente da escolha por um estudo comparativo. O caminho era outro.

De fato, os encaminhamentos da pesquisa seriam totalmente diversos e talvez mais inconsistentes sem a experiência local. Nesse sentido, também as entrevistas que tive a oportunidade de realizar deram outra dimensão às minhas questões e permitiram compreender com profundidade a prática italiana de preservação, o que não seria possível somente pelo estudo das leis e leitura da bibliografia. Lembro-me de uma em especial, na Superintendência do Ministério de Bens e Atividades Culturais e Turismo (MiBACT), em Roma, em que fui recebida pelo arquiteto Rocco Tramutola, que trabalhava na Direção de Arte, Arqueologia e Paisagismo. Gentilíssimo, concedeu-me a tarde toda de conversa.

Cabe situar o leitor de que a legislação italiana divide a proteção em patrimônio cultural e paisagem, o que não ocorre no caso brasileiro. Tramutola explicou-me em detalhes as atividades do órgão pelo viés da paisagem, que é a grande aposta italiana para planejar ações voltadas ao território como um todo. Nesse sentido, instrumentos de planejamento, gestão e monitoramento vinham sendo desenvolvidos para este propósito. Aquela tarde foi fundamental para compreender todo este outro caminho da proteção do território italiano, que vem reforçando cada vez mais o caráter central e difuso que os temas do patrimônio e da paisagem vêm alcançando.

Refleti, assim, como a ideia fragmentada de patrimônios limita um maior alcance das ações do IPHAN e dos órgãos de patrimônio estaduais e municipais no Brasil. Percebi como a falta de compreensão mais ampla da importância do tema é sem dúvida um entrave. Fato é que o patrimônio cultural acaba sendo tema apreciado por poucos, por um grupo social (intelectuais, técnicos, burocratas etc.) que carrega o capital cultural (BOURDIEU, 2017) para compreendê-los e apreciá-los. Parte significativa da população brasileira não detém esse capital cultural e tampouco se identifica com o patrimônio formalmente reconhecido pelos órgãos oficiais. Isto porque há uma desigualdade nos processos de reconhecimento e proteção que acabam valorizando determinados temas, recortes e memórias em detrimento de tantos outros; em outras palavras, muitos grupos sociais não se veem representados no patrimônio tombado [2] (SCIFONI, 2016).

Considerei esse um ponto fundamental nas conclusões da tese, a representatividade social e a presença territorial do patrimônio. Nada me pareceu mais evidente do que tornar a prática relativa ao patrimônio urbano extensiva e capilar também no Brasil. Não por meio do modelo italiano certamente, mas investigando em nossa própria história e percurso os meios de promover semelhante difusão e compreensão do tema. Os italianos estão acostumados a viver em cidades antigas; faz parte de suas rotinas. É claro que o processo histórico e o aprendizado coletivo ocorreram de formas diferentes nos dois países. Assim, considerando a formação mais recente de nossas cidades e nosso olhar ainda um tanto colonizado e eurocêntrico, tendemos a valorizar a historicidade e o aprendizado dos outros países. Ou seja, findamos por não valorizar nossas próprias histórias, processos e patrimônios. É preciso mudar esse olhar.

Essa experiência do período sanduíche, além de abrir portas para repensar tantas outras respostas às minhas questões, foi fundamental para enxergar a mim mesma, individual e coletivamente, enquanto brasileira. Ao redigir este relato, lembrei-me da conversa ficcional entre Marco Polo e Kublai Kan no livro Cidades Invisíveis de Italo Calvino. Em certo momento, Marco Polo responde que já havia descrito todas as cidades que conhecera. O Kan retruca que faltara falar de Veneza, sua cidade natal, no que Marco Polo responde: “— E de que outra cidade imagina que eu estava falando?”, e completa, “— Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza”. Em outras palavras, tudo que vivenciamos em outros lugares, cidades, países, dizem muito a respeito de nós mesmos, pois são nossas bagagens e filtros pessoais que fazem nossas experiências serem únicas.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2. ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017. BRANDI, Cesare (1963). Teoria da restauração. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. (Artes & Ofícios, 5).

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 2. ed. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SCIFONI, Simone. Práticas da preservação na França, México e Brasil: convergências de um debate. Revista CPC, v. 21, n. esp., p. 49-66, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/111910. Acesso em: 02 out. 2021.

MELO, Carina Mendes dos Santos. Nápoles: percepções de ambiências. Arquiteturismo, v. 14, n. 160.04, jul. 2020. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/14.160/7820. Acesso em: 02 out. 2021.

THIBAUD, Jean-Paul. A cidade através dos sentidos. Cadernos PROARQ, v. 18, n. 1, 2012. Disponível em: https://cadernos.proarq.fau.ufrj.br/public/docs/Proarq18_ACidade_JeanThibaud.pdf. Acesso em: 02 out. 2021.

Notas

[1] sobre esta experiência, publiquei o artigo “Percepções de ambiências”, cf. melo (2020).

[2] o tombamento é o ato jurídico-administrativo de reconhecimento do patrimônio. Pode pautar-se em diversos valores como histórico, artístico, cultural, paisagístico etc. No IPHAN, a base legal para o tombamento é o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937 que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

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