Relações interculturais e a construção da identidade social e profissional

Yasmin Saba de Almeida

Graduada em Enfermagem pela UFF.

Foi intercambista na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (Portugal) em 2018.

Conhecer novas culturas, novas pessoas e um
outro país pode ser um sonho para muitas
pessoas, talvez até mesmo um sonho distante
da realidade. Bom… para mim, também era

Os desafios

Para o aluno de graduação, a universidade não é apenas um local de formação, é também seu segundo lar. Lar esse de infinitas possibilidades, no qual os conhecimentos adquiridos perpassam por processos críticos-reflexivos. Lugar de encontro e troca de saberes, onde é permitido conservar, construir e desenvolver vínculos e valores que irão se perpetuar por toda sua vida social e profissional. Um espaço de convívio de múltiplas culturas, onde a interculturalidade e a diversidade são condições inerentes à sua existência.

A interculturalidade em seu sentido pleno de significação remete-se à troca, interação, reciprocidade e eliminação de barreiras, podendo ser visto como um modelo de abordagem da diversidade cultural, indicando a necessidade de mediar a comunicação entre diferentes grupos e promover a convivência comum. O intercultural corresponde a forma de ver o outro, favorecendo a compreensão dos problemas sociais e educativos correlatos à diversidade cultural (OLIVEIRA; FREITAS, 2017).

Com o avanço no processo de globalização nas últimas décadas, fez-se necessário implementar mudanças globais nos campos econômico, político, cultural e educacional. Esse processo deu origem e forças ao movimento de internacionalização do Ensino Superior, o qual transformou o cenário atual das universidades em verdadeiros campi globais.

A atual internacionalização da educação superior nos mostra que são múltiplas as possibilidades de se desenvolver a cooperação entre universidades, como a colaboração científica, tecnológica ou cultural, as equipes conjuntas de pesquisa, os diplomas compartilhados, o acolhimento mútuo de alunos na graduação e na pós-graduação, e a mobilidade de docentes, indicando que o processo de internacionalização de instituições de educação superior compreende um conjunto amplo de políticas, estratégias, ações e atores (OLIVEIRA; FREITAS, 2016, p. 218).

Nesse contexto, a mobilidade acadêmica surge como uma das principais estratégias de internacionalização mais relevantes para o processo de formação dos estudantes, visto que proporciona ao aluno a aquisição de conhecimentos, habilidades e competências essenciais para a vivência no mundo globalizado, além de interagir no mercado pluricultural, contribuindo para o desenvolvimento social do país (GUEDES; CAVALCANTE; PÜSCHEL, 2018).

Para Vitti (2018, p. 182), a experiência de intercâmbio se revela como uma:

prática social para o desenvolvimento da interculturalidade e da educação intercultural, que fortalece a construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais, contribuindo e estimulando o desenvolvimento da autoestima e autonomia dos sujeitos e de sociedades mais igualitárias.

Nesse âmbito de relações interculturais, Dubar (2009) aponta que nossa relação com o outro, está centrada diretamente no processo de identidade pessoal, onde a identidade de um indivíduo é construída por meio das relações humanas, e essas influenciam sua forma de se conhecer e se relacionar com o mundo. A identidade é a soma das escolhas e relações que criamos ao longo da vida, portanto, por estarmos em contato com diferentes pessoas, a nossa identidade se encontra em constante processo de construção pessoal e social (JOLY, 2017).

No entanto, apesar de seus benefícios, o processo de mobilidade acadêmica internacional se encontra inserido em uma realidade complexa e desafiadora, onde, se por um lado, a experiência de estudar em outro país proporciona diversas oportunidades de aprendizagem ao intercambista, por outro, pode lhe trazer uma série de desafios, visto que implica ao indivíduo a necessidade de adaptação aos fatores acadêmicos, psicológicos e socioculturais do país (OLIVEIRA; FREITAS, 2017).

Como o processo de construção identitária está atrelada diretamente às vivências, encontros e contatos socioculturais, tem-se por objetivo relatar as experiências vivenciadas e analisar a influência do processo de mobilidade acadêmica internacional na configuração identitária social e profissional dos alunos de graduação.

A aprendizagem cidadã

Relato de experiência sobre a realização de um intercâmbio acadêmico em Portugal, por meio do Programa de Mobilidade Acadêmica Internacional da Universidade Federal Fluminense (UFF). O Programa de Mobilidade Acadêmica Internacional tem por proposta possibilitar que os alunos da graduação da UFF realizem atividades curriculares e/ou extracurriculares em uma Instituição de Ensino Superior estrangeira, por um período de pelo menos um semestre e no máximo dois. Em específico, o edital concorrido foi o primeiro a testar a realização do intercâmbio em somente um semestre ao invés de dois, como costuma ser. No entanto, a experiência vivenciada ofereceu possibilidades concretas de aprendizagem cidadã, instrumentalizando para a inserção na vida profissional.

Enfrentando a incerteza

Todo esse processo se iniciou durante a realização do curso de Licenciatura e Bacharelado em Enfermagem da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa (EEAAC/UFF), por meio do Edital no 14/2017 – SRI/UFF divulgado no site da Universidade. Desde os primórdios desta experiência em outubro de 2017, com a divulgação do edital e do período de inscrições, os possíveis obstáculos impostos ao processo se fizeram presentes, ressaltando-se o investimento necessário para tal.

Apesar de haver a possibilidade de concorrer a uma das bolsas de auxílio financeiro, devido a problemas de saúde, não houve a possibilidade de entregar os documentos necessários no prazo estipulado para inscrição. Portanto, todo o valor necessário para a realização do intercâmbio partiu do esforço, individual e coletivo, da autora e de seus familiares.

O processo de mobilidade acadêmica internacional ocorreu na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), no período de setembro de 2018 a janeiro de 2019. Diante das necessidades acadêmicas, a ESEnfC viabilizou a realização do Ensino Clínico em Cuidados Primários/Diferenciados em Enfermagem Médico-Cirúrgica e Reabilitação (EMCR) no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), nos setores de neurocirurgia e medicina interna, totalizando 560 horas de estágio, incluindo as horas de contato com o paciente e as de trabalho autônomo do estudante.

O estágio possibilitou vivenciar situações no âmbito da enfermagem local que culminaram na construção deste relato. Ademais, fora disponibilizada uma vaga para a residência estudantil da ESEnfC, local esse que permite o convívio entre intercambistas de todo o mundo, portanto, servindo como território de grande riqueza intercultural.

A cidade de Coimbra é a capital do distrito central de Portugal, sendo, portanto, a sua maior cidade, com cerca de 150.000 habitantes. Suas redes ferroviárias permitem chegar nos aeroportos de Lisboa e Porto em torno de uma hora. Além disso, a cidade possui linhas de trens internacionais com ligações a Madri e Paris. Coimbra divide seus títulos entre uma das cidades históricas de Portugal mais antigas, tendo mais de dois mil anos de história, desde o Império Romano, e o de uma cidade de universitária, por contar com mais de 30.000 estudantes, cercada por festividades estudantis ritualísticas, como a “Latada” e a “Queima das Fitas” (UNIVERSIDADE DE COIMBRA, c2021).

Assim, após a chegada em Portugal, o principal desafio se deu pela necessidade de adaptação sociocultural e profissional.

Natal em Coimbra

Construção identitária: aprendendo com a diversidade

Por mais que o Brasil tenha sido colonizado por Portugal por quase 300 anos, são nítidas as divergências culturais entre os dois países, que vão desde processos ritualísticos a diferenças na própria linguagem, como o abandono do gerúndio na língua portuguesa europeia. Assim, apesar de ambos os países falarem português, a presença do sotaque, sobretudo, dos portugueses originários do norte do país, acabava por dificultar a compreensão imediata da fala. Este desafio persistiu por semanas, tendo sido amenizado conforme o diálogo com os alunos nativos e os pacientes se intensificava.

Estudos apontam que as moradias estudantis podem facilitar o processo de adaptação sociocultural, visto que propiciam a aprendizagem por meio da convivência com a diversidade, contribuindo para a construção identitária dos alunos, possibilitando a aquisição de habilidades sobre como enfrentar os desafios, estigmas e preconceitos impostos neste processo, além de possuir um papel de relevância na melhoria do desempenho acadêmico (GARRIDO, 2015). Portanto, dentro do âmbito social, a estadia na residência estudantil foi de extrema relevância para o processo de adaptação ao novo país.

Ao permitir que diversos alunos dos mais variados países convivam em um mesmo ambiente, este acaba por estimular a mudança, permitindo ao estudante presenciar e adquirir novos conhecimentos a partir das novas culturas, novas línguas e novas pessoas. Os ambientes comunitários, como as cozinhas e os quartos duplos e triplos, permitiam aos alunos usufruírem de momentos de socialização e contato intercultural, facilitando o processo de aprendizagem das línguas estrangeiras e dos costumes associados às culturas dos de- mais alunos internacionais.

Cozinha comunitária

As principais diferenças entre Brasil e Portugal estiveram presentes no âmbito profissional, visíveis desde a disponibilidade de diversos recursos materiais, que por muitas vezes, não são encontrados com facilidade em hospitais públicos brasileiros até a disposição de recursos humanos, visto que por não existirem técnicos de Enfermagem em Portugal, a equipe é composta somente por profissionais de nível superior. Essas divergências apontaram para a necessidade de adaptabilidade e da busca contínua de conhecimento, de forma a suprir as demandas da prática profissional.

Apesar das diferenças, pode-se observar uma correlação negativa entre as práticas em ambos os países: a existência de distanciamento entre os enfermeiros e as outras categorias profissionais, reforçando a ideia de submissão e hierarquização. De acordo com Silva et al. (2018), essa visão da Enfermagem como uma profissão submissa, acaba por influenciar de forma negativa na relação entre pacientes e enfermeiros, comprometendo a construção de vínculos e distorcendo a imagem e função dos profissionais como integrante da equipe de saúde. Vale ressaltar que no Brasil esse problema é aparentemente menor, ao ponto que o profissional da Enfermagem possui maior autonomia para tomada de decisão, sobretudo, no que tange ao processo de cuidado do paciente.

Assim, os estágios permitiram desenvolver e aprimorar competências necessárias à prática profissional, como as de desenvolvimento pessoal, competências clínicas, competências psicossociais e ético-deontológicas, mas, também, estimularam processos reflexão e de (re)construção/(re)afirmação da identidade profissional. Além do mais, a facilidade de se deslocar pela União Europeia permitiu que fossem conhecidos outros locais e culturas além das de Portugal, auxiliando a autora a aprimorar suas habilidades em diversas línguas estrangeiras, como o inglês, espanhol e conhecer a língua holandesa, por meio de viagens a países como a Espanha e a Holanda.

A reforma do pensamento

A interculturalidade presente na cidade universitária de Coimbra e em todo o processo de intercâmbio se fez elemento-chave para o sucesso do processo de aprendizagem, visto que possibilitou a aquisição de conhecimentos e habilidades linguísticas e de aprimoramento sociocultural que me ajudaram no processo de adaptação internacional. O contato com as diferenças presenciadas entre Brasil e Portugal, permitiu-me ver o mundo com outros olhos, estimulando o sentimento de determinação pela busca de desafios e superação, e estimulando a minha capacidade de adaptabilidade. Ademais, auxiliou-me a gerenciar a minha prática social e profissional, estimulando o processo de desenvolvimento de competências essenciais para a Enfermagem.

Logo, de uma forma geral, o tempo que passei em Portugal, por meio do Processo de Mobilidade Acadêmica, foi de suma importância para o meu desenvolvimento acadêmico e futuro profissional por me prestigiar com experiências que nunca poderia ter tido no Brasil, desta forma, ajudando construir e aprimorar minha identidade social e profissional.

Referências

DUBAR, C. A crise das identidades: a interpretação de uma mutação. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 2009.

GARRIDO, E. N. A Experiência da Moradia Estudantil Universitária: Impactos sobre seus Moradores. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 35, n. 3, p. 726- 739, set. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703001142014. Acesso em: 20 jan. 2021.

GUEDES, G. F.; CAVALCANTE, I. M. S.; PÜSCHEL, V. A. A. Mobilidade estudantil internacional: a experiência de estudantes de graduação em Enfermagem. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 52, e03358, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s1980-220×2017039403358. Acesso em: 14 jan. 2021.

JOLY, M. C. L. A construção da identidade profissional do professor de Música para a escola de Educação Básica. 2017. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 2017.

KWAME NKRUMAH, ‘S. Independence speech on 6 March 1957. Afro Heritage, S.d. Disponível em: https://afrolegends.com/2012/10/04/kwame-nkrumahs-independence-speech-on-6-march-1957/. Acesso em: 07 fev. 2021.

OLIVEIRA, A. L.; FREITAS, M. E. Motivações para mobilidade acadêmica internacional: a visão de alunos e professores universitários. Educ. rev., Belo Horizonte, v. 32, n. 3, p. 217-246, set. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-4698148237. Acesso em: 07 fev. 2021.

OLIVEIRA, A. L.; FREITAS, M. E. Relações interculturais na vida universitária: experiências de mobilidade internacional de docentes e discentes. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 22, n. 70, p. 774-801, jul. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s1413-24782017227039. Acesso em: 04 fev. 2021.

SILVA, A.R. et al. Identidade profissional de enfermagem: uma perspectiva através das lentes da mídia impressa brasileira. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, e20180182, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0182. Acesso em: 04 fev. 2021.

UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Informação para candidatos internacionais: A cidade de Coimbra. Portugal, c2021. Disponível em: https://www.uc.pt/candidatos-internacionais/estudar-viver-coimbra/cidade. Acesso em: 20 jan. 2021.

VITTI, S. C. A. Intercâmbio cultural e identidade: um estudo das repercussões da aprendizagem da língua inglesa no exterior na identidade de jovens graduandos. Rev. Ciênc. Ext. v. 14, n. 3, p. 10-19, 2018. Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/revista_proex/article/view/1872. Acesso em: 20 jan. 2021.

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