Nākamā pietura: Reznas iela
Alice Grobberio MoreiraGraduanda em Relações Internacionais na UFF.
Foi intercambista na Latvijas Universitāte (Letônia) em 2019.
Recentemente descobri que, quando associadas a determinadas emoções, algumas de nossas memórias são extremamente detalhadas e meu intercâmbio é a prova definitiva disso. Lembro com precisão do momento em que recebi a notícia de que havia sido aprovada no programa REARI-Utrecht, em meados de 2018, e cercada por amigas queridas, êxtase total! Lembro na pele a sensação de -10°C quando as portas do aeroporto de Riga se abriram e me permitiram viver naquela cidade. No mesmo dia, me lembro de subir as escadas do dormitório Reznas que viria a ser o meu lar nos meses seguintes; lembro de cada detalhe da recepção, de meu quarto e lembro da sensação de vivenciar isso pela primeira vez. Lembro-me da emoção da neve caindo, de conhecer pessoas que, hoje, são amigas próximas, das ruas estreitas e calmas da cidade e de me apaixonar por um lugar, tão, tão tenro. E, como se fosse ontem, lembro da despedida, dos meus últimos minutos naquele aconchego e de ver irem tantas pessoas especiais, dessa vez com lágrimas de saudades nos olhos.
Com a esperança de atenuar um pouco dessa saudade, escrevo este relato. Vamos começar por ela, a protagonista dessa história, minha casa: Rīga. Tenho que ser honesta com o leitor, as primeiras impressões que tive da cidade não foram as melhores; em 2015, quando tive a oportunidade de visitá-la pela primeira vez, o que eu vi foi uma população aparentemente revoltada com o aumento de imigrantes em seu país protestando, ironicamente, na alameda chamada Liberdade (Brīvības bulvāris). Apesar disso, vi também, em pleno outono letão, uma cidade espetacular com ruas calmas, uma história muitíssimo interessante e que, sim, poderia ser amável. Alguns anos depois eu pude, com felicidade, confirmar que existe amor, acolhimento e simpatia naquele país pequeno, mas de enorme importância para mim.
As primeiras semanas na minha estadia prolongada foram, pode-se dizer, interessantes. Com a ajuda de meus colegas — todos igualmente estrangeiros ali — fomos descobrindo os caminhos para chegarmos à faculdade, aos dormitórios, ao centro da cidade e aos bares. Aqueles caminhos, linhas de ônibus e de trolleys, seriam meus companheiros diários tanto para conseguir efetivamente me locomover na cidade quanto para conhecê-la mais de perto por ruelas que eu jamais conheceria de outras formas. Para fins práticos, devo admitir que o sistema de transporte de Riga, apesar de não ser perfeito, é extremamente eficiente e acessível e até mesmo a linha 15 lotada de manhã é motivo de nostalgia. Com o tempo, apesar de ainda não entender uma única palavra do que era dito nos alto-falantes (exceto “uzmanību!”, cuidado), me acostumei com os trajetos que me levavam à universidade, passando pela magnífica Ópera Nacional e chegando até o prédio que fica na entrada da Vecrīga, o centro histórico da cidade, por si só, magnífico.
A estrutura da universidade foi motivo de surpresa para mim. Acostumada com os amáveis prédios do Gragoatá, com a natureza do campus e com a vista mais linda do mundo, a da orla para a Baía de Guanabara (saudades!), qual não foi a minha surpresa ao encontrar o monumento que é a Latvijas Universitāte. Sua sede é um prédio magnânimo no centro da cidade, cercado por um belo parque florido (que eu só fui descobrir que era tão bonito quando a neve desapareceu, no início de março) e foi lá onde tive meu primeiro contato com a ESN (Erasmus Student Network), responsável por acolher os estudantes estrangeiros, por meio da qual conheci muitos companheiros de intercâmbio. Uma coisa bastante curiosa sobre a LU é que, assim como a UFF de Niterói, cada campus está localizado em uma parte diferente da cidade — essa coincidência talvez tenha sido um dos motivos de me sentir tão familiarizada ali.
Esses fatores foram, no geral, positivos nessa experiência; apesar de sentir falta de tais conhecimentos no supermercado, por exemplo, ou quando precisava de uma informação no dormitório, estar constantemente alheia ao que era dito à minha volta por seis meses foi fonte de uma paz indescritível, paz essa que eu nem sabia que era possível existir. Essa posição me colocava, também, em uma outra situação absolutamente interessante — da mesma forma que eu não entendia outrem, muito dificilmente havia quem falasse português ao meu redor. Inclusive, eu demorei cerca de um mês para encontrar (queridos) brasileiros naquela cidade, mas até o momento eu mal tinha falado minha língua-mãe pessoalmente com alguém. Essa sensação de paz e, de certa forma, de privacidade onde quer que eu estivesse era igualmente inédita e maravilhosa.
Antes de me mudar para a Letônia, eu havia lido uma matéria da BBC alegando que aquele era “o país dos introvertidos”, mas que, apesar disso, as pessoas eram muito amigáveis e criativas. Sendo completamente honesta, essa matéria não me tocou tão profundamente, afinal, eu nasci no Brasil onde todos somos, supostamente, festivos, acolhedores e extrovertidos, pelo menos aos olhos dos estrangeiros desavisados. Não que não haja brasileiros que são dessa forma, mas é no mínimo ousado assumir que certos comportamentos são universais em qualquer sociedade. Cito essa matéria porque hoje penso que tenho a possibilidade de tecer alguns comentários sobre aquela sociedade, sem esquecer que a minha visão será sempre superficial e enviesada — como, honestamente, todo tipo de análise deste tipo o é.
Fugindo do binômio introversão/extroversão, o que eu observei nos seis meses que tive o prazer de viver naquele país foi que as pessoas que conheci, letãs ou não, sempre me acolheram de braços abertos. Nas ruas, sempre foram solícitas e muito reservadas, calmas e, mesmo que não falassem inglês, tentavam me auxiliar da maneira que conseguiam. Dizer que nunca houve incidentes desagradáveis, entretanto, seria mentir. Por vezes olhares estranhos eram designados a mim, ou algum atendente era desnecessariamente rude, ou algum homem possivelmente bêbado ou senhora de idade me dirigia palavras incompreensíveis — nada que eu já não tivesse vivido no Brasil. Acredito que ambos os tratamentos, que na maioria absoluta dos casos foram agradáveis, se deram pelo fato de eu tão obviamente não ser letã. Na maior parte do tempo, ser estrangeira naquele país foi extremamente agradável.
Não havia elevadores nos campi e não havia restaurante universitário, apenas uma cantina com capacidade máxima de 100 pessoas. As salas de aula não eram como aqueles auditórios de filmes estadunidenses, tampouco eram grandes, pelo menos não as que eu conheci. No geral, os assentos dos alunos eram em mesas compartilhadas organizadas por fileiras. Algo que eu sempre digo sobre os letões é que há duas coisas que apenas quem é nascido no país é capaz de fazer: a primeira é falar letão e a segunda é ter um relógio biológico capaz de acompanhar as mudanças nos horários de luz solar durante o ano. Em janeiro, havia apenas seis horas claras durante o dia, das 11 às 17 horas, e em junho, no festival Jāņi (a festa junina deles), o sol nasceu às 4 da manhã e se pôs às 10 da noite. Meu corpo, acostumado com os horários tropicais, teve muita dificuldade em se adaptar a essa variação espantosa das altas latitudes.
Acredito que a maior diferença e, definitivamente, a mais difícil de superar é relacionada à alimentação. Eu sempre ouvi de brasileiros que vivem no exterior como faz falta a nossa diversidade de frutas e legumes no dia a dia em outros países e, de fato, é muito triste ter apenas uma opção de banana, de manga e não poder encontrar feijão in natura. Com o perdão do exagero, apesar de ter aproveitado a criatividade da culinária local, tanto a pouca variedade de comidas (que eu conheço) quanto a minha ignorância no tocante ao que eram certos alimentos (devido à questão da língua) acabaram sendo obstáculos na minha estadia. Eu diria que essa é a principal reclamação de todo esse período.
Para além da bagagem intercultural e social que trouxe de volta comigo quando retornei ao Brasil e dos vínculos emocionais que mantive com a cidade, o intercâmbio também possibilitou minha primeira experiência profissional. Em 2020, recebi uma mensagem de um colega que conheci em Riga, perguntando se eu não estaria interessada em participar de um projeto na empresa letã onde ele trabalha, no qual seria necessária uma pessoa que falasse inglês e português. Sem hesitar, aceitei a proposta e pude realizar esse projeto nos meses seguintes, o que me foi de grande valia e aprendizado e possibilitou que, mesmo de tão longe, eu me sentisse mais próxima daquele país.
Além disso, os aprendizados nos cursos que optei por estudar durante aquele semestre me são de grande valia. É muito interessante poder enxergar o mundo através dos olhos de uma outra cultura, e foi isso que as aulas naquele país me proporcionaram. Os encontros sobre história econômica me permitiram aprender, por meio de um senhor que apesar de ser letão, havia saído do país muito novo como refugiado, os grandes acontecimentos e dinâmicas históricas.
Ter acesso a esse ponto de vista me fez ver a história desse país com muito mais atenção e interesse. Além disso, o curso de comunicação em um contexto global me ajuda de diversas formas e em diversos momentos. Por ter me equipado com o conhecimento acerca do ambiente empresarial nas mais variadas culturas, acredito que ele seja de extrema valia, principalmente levando em consideração que ter uma visão global sobre o mundo é uma ferramenta cada vez mais requisitada no mercado de trabalho. No mais, posso dizer que observei que os colegas de classe, apesar de serem dos mais variados locais do mundo, não eram tão diferentes de mim quanto eu pensei. É muito interessante ver que, embora os seres humanos encontrem sempre diferenças que os segregam, no final das contas eles têm mais coisas em comum do que jamais imaginariam, mesmo com pessoas que nasceram a mais de dez mil quilômetros de distância.
Por fim, é impossível enumerar o quanto essa experiência mudou a minha existência (desculpe, leitor, por estar sendo tão repetitiva, mas é a mais pura verdade!). Digo isso porque ter o contato direto com tantas pessoas de lugares e histórias tão distintas em um espaço de tempo relativamente curto causou um impacto imenso na maneira como eu me expresso. Não apenas no melhoramento do inglês, que havia sido um dos motivos de eu escolher fazer um intercâmbio, mas na própria maneira de me mostrar para o mundo. Acredito muito que o começo da vida adulta tenha essas coisas — repensar a maneira como nos comunicamos com os outros e como os entendemos. Posso afirmar que o meu primeiro aprendizado foi parar e ouvir. Ouvir os diferentes sotaques e línguas, as histórias e aspectos culturais de dezenas de países, ouvir sobre o que as pessoas pensavam sobre o meu país e respeitar as diferenças em suas diversas formas. O oposto também é verdade. Aprender a expressar o que eu pensava de maneira compreensível para aqueles com experiências completamente diferentes das que eu tinha foi um desafio. Com o passar das semanas, eu me familiarizava cada vez mais com aquela nova realidade — saber falar nos momentos certos e assertivamente foi essencial para a minha vivência naquele lugar. Além disso, minha estadia também me permitiu quebrar a barreira da timidez que, hoje eu percebo, me privou de tantas coisas por tantos anos. Nada como estar sozinha do outro lado do mundo para desenvolver certas habilidades essenciais para qualquer ser humano!
Parece-me adequado terminar, aqui, minha exposição. Longe de ter esgotado meus relatos sobre essa experiência, esse texto é, acima de tudo, um manifesto saudoso daqueles que foram meses excepcionais na minha vida. Tudo isso foi possível, evidentemente, não só graças a mim, mas principalmente graças à UFF, que por meio da parceria REARI-Utrecht tornou isso tudo realizável, e também graças a meus pais, que me deram suporte de todas as maneiras para a realização deste que era um sonho de longa data.
Tudo que vivi naquele período me marcou profundamente de diversas maneiras e, como disse no início do texto, lembrar de- les sempre me leva a um lugar muito feliz, afinal, lá pude conhecer pessoas que são parte essencial de quem eu sou. A Letônia e a UFF, igualmente, foram e ainda são responsáveis por vários momentos e pessoas inesquecíveis e insubstituíveis no meu caminho e eu não poderia ser mais grata por todas as oportunidades que tive. Por fim, Riga, você sempre será especial para mim e estará presente em meus pensamentos mais afetuosos.