Na terra dos lusitanos
Reinaldo Matos da Anunciação JuniorFoi intercambista no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (Portugal) em 2018.
A viagem e o início do semestre letivo em Portugal estavam marcados para o final de fevereiro de 2018. Mesmo após toda a correria para retirada da documentação, visto estudantil, passagem aérea, documentos indispensáveis para a viagem e demais preocupações, a minha “ficha” só caiu que o sonho se tornara realidade, ao pisar na área de desembarque do saguão do aeroporto do Porto. Por uns breves minutos, pude vislumbrar a sensação de estar fora de meu corpo, anestesiado, apenas refletindo sobre tudo que estava acontecendo e o que haveria de ocorrer durante o intercâmbio acadêmico. Nesse momento, após um suspiro profundo, pensei comigo mesmo: “Pronto! É agora!”.
Bom, para quem não sabe, o mês de fevereiro em Portugal ainda é bastante frio, já que faz parte do inverno português. Imagine um brasileiro despreparado para um inverno europeu, com trajes do inverno brasileiro. Assim que botei meus pés em Braga (cidade onde mantive estadia), próxima de Barcelos onde fica o Instituto Politécnico do Cávado e Ave, instituição na qual cursei o período de mobilidade, percebi que o clima não estava para brincadeira ao sentir o vento gélido ultrapassar o tecido das minhas calças e o meu pé gelar por debaixo da meia e do tênis.
Uma das primeiras providências a serem tomadas, foi adquirir as “segunda-peles”, tecidos finos usados debaixo da roupa que seguram o calor no corpo e casacos mais pesados. Mal sabia eu que estes dois itens seriam os meus fiéis companheiros de saída, durante todo período de frio que passei.
E com o frio, a vontade de comer aumenta bastante. Pois bem, introduzirei o assunto da experiência vivida em Portugal, começando pela comida e contando um pouco da minha experiência com a culinária portuguesa. No geral, ela não é muito diferente da comida brasileira. Claro que com suas formas peculiares e distinções, porém não são servidos pratos muito diferentes dos nossos. Os pratos do dia a dia são sempre guarnecidos com muito arroz (como todo brasileiro de respeito gosta), um tipo de carne, batata frita e uma salada. Tudo muito bem servido. Este seria um “prato feito” de respeito naquela região. E o melhor, a região Norte de Portugal (como Braga e Barcelos) tem custos de vida menos elevados do que próximo das cidades de Porto e Lisboa, mais ao Sul. Com isto, por €4,00 euros (com cotação à época ao equivalente a R$16,00 reais), podia-se comer além de um prato bem servido em diversos restaurantes, em alguns, neste valor ainda estava incluso a bebida, sobremesa e até mesmo um cafezinho. Desses pratos, um dos meus preferidos era a “carreta panada”, costeletas de porco empanadas, acompanhadas de arroz, batatas fritas e uma salada de tomate e alface. Uma delícia! Dá água na boca só de imaginar. Acompanhadas de outro queridinho português, o refrigerante de laranja Sumol.
Mas a minha paixão mesmo era pelo prato típico da região Norte, que apesar do nome, é um prato originalmente lusitano, a “Francesinha”. Que consiste num hambúrguer de pão de forma, embrulhado numa cobertura de queijo, mergulhados num molho especial, com um ovo semi-cru no topo, sendo a cereja do bolo. Mesmo que pareça nojento o lance do ovo semi-cru em cima de tudo, confesso que o gosto dele passou despercebido na explosão de sabores que é este prato. Claro que para acompanhar essa bomba calórica, o prato não estaria completo se não complementado com uma porção de batatas fritas mergulhadas em um molho especial.
Fui apresentado ao pastel de nata no primeiro dia no IPCA. Assim que me deram para experimentar, como em todos os outros lugares que se degusta tal iguaria, os portugueses fazem questão de salientar que se tratava do pastel de nata. Pois o pastel de Belém, só é servido em um local. Na fábrica de pastéis de Belém, no bairro de Belém, em Lisboa. Este com a sua própria fórmula secreta guardada a sete chaves há gerações e de crocância e sabores especiais e únicos.
Francesinha
Vocábulos portugueses
Como todo bom estudante intercambista, é preciso conhecer e se familiarizar rapidamente com o vocabulário nativo, principalmente quando este conhecimento afetar a ação de pegar a condução certa, ir ao destino desejado ou ao ponto de alimentação pretendido. Trago, então, alguns vocábulos que todo estudante em mobilidade internacional em Portugal deve aprender e rápido. A primeira variável de denominação que temos contato, ao chegar no país, é a nomenclatura dada ao “ônibus”, lá chamado de “autocarro”. Que se pega na “Central de Camionagem”, o equivalente à nossa rodoviária. Deseja visitar outra cidade de trem? Pois bem, o que você precisa é pegar um “comboio”, como eles chamam os trens de passageiros. A vontade de ir ao banheiro apertou, e agora? Não pergunte onde fica o banheiro, mas sim onde fica a “casa de banhos”.
A forma de dizer qual é o horário também varia, mas não se preocupe, pois esta variação ocorre de forma regional no país. Em algumas regiões, se alguém pretende dizer que são 12h e 50min, é falado “dez para a uma”, como já estamos mais acostumados. No entanto, em outras regiões, já é dito “uma menos dez”. Em ambos os casos está correta a pronúncia, apenas são formas diferentes de se dizer o mesmo horário.
O café da manhã é designado de “pequeno almoço”, a calçada de “passeio”, inclusive algumas regiões de Minas Gerais, ainda adotam a nomenclatura, conservando o legado português. A faixa de pedestres é “passadeira”, na qual os carros param ao simples encostar de pés dos transeuntes. Se deseja saber os preços de um restaurante, pode perguntar pelo seu “preçário”. E quando o dinheiro acaba, é preciso “levantar” o dinheiro em um caixa eletrônico e guardá-lo no “porta-moedas” (carteira).
Experiência acadêmica no estrangeiro
Minha trajetória diária consistia basicamente em pegar o “autocarro” num ponto próximo da onde morava, até o centro de Braga, onde caminhava até a “central de camionagem” e esperava o horário do ônibus que tinha convênio com o Instituto Politécnico do Cávado e Ave. Chegando à instituição, apesar de relativamente nova comparada às instituições educacionais de ensino superior tradicionais no Brasil, o IPCA tem uma estrutura muito bonita, moderna e espaços amplos. Comportando diversos cursos, tanto de Ciências Humanas quanto de Exatas.
Em meu primeiro contato com a instituição portuguesa, somos apresentados aos outros alunos intercambistas do sistema europeu de mobilidade internacional acadêmica chamado de “Erasmus” e também a outros intercambistas brasileiros, que para a minha sorte, tive a satisfação de poder conviver durante o projeto com mais três brasileiros, sendo um deles também da UFF. A sensação de alegria e comemoração do momento ao encontrar outros brasileiros entre diversos estrangeiros é uma experiência imemorável. Indivíduos que nunca haviam se visto na vida, se abraçando e cumprimentando como se fossem amigos de longa data.
Depois de sermos introduzidos ao método de ensino português e montarmos nossas grades de disciplinas, fomos informados que para os alunos falantes da língua portuguesa o método de avaliação seria o mesmo aplicado aos alunos nacionais, sendo necessária a realização dos testes finais para concluir a mobilidade com sucesso. Já os alunos não falantes do português, estariam não só dispensados de algumas matérias como teriam uma avaliação final diferenciada. O que fez a mobilidade ser muito mais puxada para os brasileiros, já que tinham que se dedicar tanto quanto os alunos portugueses para obterem nota suficiente. O que deu a entender aos alunos estrangeiros que estavam numa verdadeira colônia de férias.
O IPCA fornece todo o conforto e necessidades aos estudos, disponibilizando wi-fi gratuito, dispondo de duas bibliotecas, todo o conteúdo dado em sala de aula era postado na plataforma de ensino do IPCA, bem parecida com o Conexão UFF, que infelizmente por aqui ainda é pouco explorado. E também disponibilizava uma máquina de fotocópias (xerox) e impressão para os alunos.
No almoço, tínhamos as alternativas entre o bandejão do IPCA ou de esquentarmos a comida na copa que tinha vários microondas para isso. Para ter acesso ao bandejão e comer mais barato, era preciso aplicar um valor nos fundos da sua carteira estudantil que seria abatido no momento de utilizar os serviços do bandejão. A comida era boa, contava até com sobremesa. E na área onde era realizada as refeições contava com diversas tomadas na mesa para carregar os celulares. Portanto, quando tinha aula à tarde, o bandejão estava na minha rota de atividades.
A dimensão e organização das salas de aula despertaram interesse, pois quando não são dadas nos auditórios, são lecionadas em salas com mesas compartilhadas, na qual os estudantes ficam lado a lado numa mesma mesa longa, formando-se vários grupos de fileiras. Disposição interessante, pois vai contra o individualismo adotado na configuração brasileira.
A chamada para presença também é realizada de modo diferente. É feita por meio eletrônico, adotando o sistema de “bater ponto”, através da carteira estudantil. Se demonstrou ser mais eficiente, prático, poupando tempo, já que o aluno passa a carteira na máquina ao entrar na sala de aula, após autorização do professor que também passa seu cartão na máquina indicando o início ou fim da aula. Sendo também uma medida mais ecológica, pois não desperdiça papel com listas de chamadas.
O que pude reparar, durante as aulas no exterior, é que o Direito Português não é muito diferente ou distante do Direito Brasileiro. Existem pequenas nuances em algumas regras, mas a essência do Direito e seus princípios norteadores são os mesmos no geral. E digo mais, indo contra nossa “síndrome de vira-lata”, o Direito Brasileiro não fica muito atrás do Direito Português. Temos uma legislação moderna e inovadora em certos aspectos, como o instituto do casamento, que no Brasil, independente de sua religião, o matrimônio deve sempre ser oficializado e registrado em cartório. Em Portugal, o Direito deles dá um tratamento privilegiado ao casamento católico, que dispensa o registro civil. Fato que, faz com que pessoas que pertençam a outras religiões e casais homossexuais (que não podem se casar de acordo com a doutrina católica) tenham um processo formal burocrático maior para conseguirem se casar. Prejudicando o princípio da igualdade de todos perante a lei. Por outro lado, também pude reparar inovações louváveis no Direito Português, com a legalização do aborto, descriminalização de todas as drogas e a criação do instituto do “apadrinhamento civil”, similar à adoção, mas sem que a criança perca seus laços em definitivo com a sua família biológica.
Fatos interessantes
Um dos símbolos de Portugal é o galo, presente na decoração das casas de muitos de nossos avós, seja em pequenas estatuetas, panos de prato ou utensílios de cozinha. Mas poucos sabem a verdadeira história por trás do símbolo.
Seta indicando o caminho para Santiago de Compostela
Ocorre que a origem do galo está justamente em Barcelos. A lenda do galo nasceu na idade média, após um peregrino do Caminho de Santiago ser acusado injustamente de um crime e ter sido salvo milagrosamente por um galo minutos antes de ser executado, dando origem à lenda. Por causa disso, hoje o galo é conhecido mundialmente e associado ao país.
A cidade de Barcelos fica na rota do Caminho Português para Santiago de Compostela, pode-se notar várias setinhas amarelas no chão e nas paredes dessas cidades, marcando e indicando o caminho. Todas elas apontam para a direção da cidade de Santiago de Compostela, na região da Galícia (Espanha). Onde se encontra a Igreja de São Tiago e acredita-se também onde estejam depositados seus restos mortais. Durante todos os anos, diversos fiéis de vários países do continente e do mundo realizam esta peregrinação a pé em homenagem e devoção ao santo. E há aqueles que o fazem por aventura ou contemplação da natureza, já que o trajeto é repleto de trilhas, cenários exóticos e bucólicos.
Este evento comemora o fim do ano letivo português, que ocorre no meio do ano (maio), simbolizando o fim da jornada acadêmica para os “finalistas” (como são chamados os formandos), e o início da jornada para os calouros que só deixam de ser calouros após concluído o ano letivo.
A Queima das Fitas também antecede o período de estudos para os testes finais, o que certamente causa muito nervosismo entre os universitários. Portanto, essa festa também tem esse viés relaxante e apaziguador dos nervos e prepara os alunos para a sua reta final. O que se segue de um período de calmaria nos campi e de muitos estudos.
Modernidade X Social
Um outro fato que despertou muita atenção, durante o período de mobilidade, é de como o desemprego estrutural, ocasionado pela utilização de novas tecnologias e substituição da mão de obra humana por inteligências artificiais ou mão de obra mecanizada, vem sendo bastante explorado não só em Portugal, mas na Europa em geral. Para realizar as atividades do cotidiano que antes era necessária a interação humana, esta vem sendo cada vez menos utilizada.
Assim, nós mesmos, quando fazemos compras em um mercado ou loja, passamos os produtos no caixa, pagando com nosso cartão de débito ou crédito. Pedidos em lanchonetes e restaurantes são feitos inteiramente por meio de “totens eletrônicos”, sem contato nenhum com os funcionários do local, somente para retirar o pedido. E ainda há opções de contato zero com o ser humano, presente nos serviços de take away ou grab and go, em que a pessoa faz seu pedido numa máquina que aquece o produto e entrega ao consumidor já pronto para o consumo. E também nos serviços públicos, como o de limpeza urbana, na qual o trabalho é feito quase inteiramente por uma máquina anexa ao caminhão de coleta de lixo, já que o sistema é todo informatizado, dispensando o trabalho dos garis, por exemplo.
Por ser integrante da Ordem Demolay Brasileira, instituição juvenil de cunho filantrópico, outro fato que me despertou atenção foi encontrar em vários pontos e cidades de Portugal, caixas/containers de metal destinadas a doações de roupas que as pessoas não utilizam mais e que desejam encaminhá-las para doação. O material doado é vendido e parte dos lucros são revertidos a ONGs ou projetos sociais. Uma excelente iniciativa e exemplo para outros países.
Apesar de todas as distinções entre o povo português e o brasileiro, eles com seu jeito meio fechado de ser e de expressões exageradas e variadas vezes, aparentemente, muito diferente do jeito “amistoso” de ser do brasileiro, temos muito em comum histórico e culturalmente. Muitos costumes e formas de expressão dos quais já não lembramos da herança lusitana ou que já se perderam no tempo. Mas, ainda temos muito conhecimento, vivências e aprendizados a compartilhar uns com os outros.
Com a mobilidade internacional, tive a oportunidade de conhecer outros países que me marcaram e expandiram a minha visão sobre o mundo, de ser, de viver e de observar “o outro”. Entendendo como cada cultura e sociedade tem sua forma única de se comportar e expressar-se perante o mundo. Assim, como me proporcionou a realização de um sonho de uma vida de viajar para fora do Brasil e de conhecer a França, Espanha e Portugal.