Meus aprendizados em Portugal

Milla Wan-Meyl Quintiere Erthal

Graduanda em Letras – Português/Literaturas pela UFF.

Foi intercambista na Universidade de Évora (Portugal) em 2019.

Sexta-feira, 13 de setembro de 2019. Terminava uma saga para dar início à realização de um sonho. Após um ano entre a inscrição no processo seletivo e a viagem para Évora, finalmente cheguei à casa que seria a minha morada por alguns meses. Coloquei as malas no chão, abri as cortinas e lá estava uma imensa lua cheia brilhando e iluminando o meu quarto. Comecei a chorar. O que era para ser um alívio transformou-se num medo inesperado – percebi que não poderia pegar o Busuff e voltar para casa e que o momento com o qual sonhei por metade da minha vida havia chegado. Era real! Estava do outro lado do oceano Atlântico para cursar um semestre de Letras-Literaturas na Universidade de Évora, a segunda mais antiga de Portugal, fundada em 1559.

Na capital do Alentejo, respiramos história por todos os lados. O centro histórico de Évora é circundado por muralhas do século XIV, reconstruídas e restauradas ao longo dos anos e que serviram como proteção a invasões. Entre outros locais e monumentos, em uma área de aproximadamente dois quilômetros e a poucos minutos de distância da casa onde eu tive a sorte de ficar hospedada, havia um templo romano do século I, uma Catedral do século XII, o antigo prédio do Tribunal do Santo Ofício do século XIV (atualmente, restaurado e ocupado pela Fundação Eugênio de Almeida) e a Igreja de São Francisco, concluída no século XVI. Ao lado, uma das principais atrações da cidade, a Capela dos Ossos, construída entre os séculos XVI e XVII, cujas paredes e colunas são revestidas por ossos humanos. Gravados no pórtico de mármore, em sua entrada, estão os dizeres: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. O que poderia dar um ar sombrio à construção proporciona o efeito oposto ao nos convidar a uma profunda reflexão sobre a efemeridade da vida.

Catedral de Évora

Universidade de Évora

Critérios para a escolha das disciplinas

A oportunidade de morar numa cidade, declarada patrimônio mundial pela UNESCO e candidata a Capital Europeia da Cultura, e estar cercada por tantas riquezas históricas foram fatores que me influenciaram na escolha das disciplinas que iria cursar no semestre. Assim, além de uma disciplina ligada diretamente ao meu curso, como Literatura Portuguesa, escolhi também as disciplinas de Introdução ao Patrimônio Cultural e Cultura Portuguesa. Após a conclusão do semestre letivo, penso que não poderia ter feito escolhas mais acertadas.

Nas aulas de Literatura Portuguesa, estudamos as manifestações literárias do período entre os séculos XIII e XVI, iniciando com a lírica trovadoresca de D. Diniz, analisando as crônicas de Fernão Lopes e encerrando com o teatro de Gil Vicente, englobando, em uma ordem cronológica, a poesia, a narrativa e o drama. Analisamos ainda, textos selecionados de uma publicação de 1560, o Cancioneiro Geral, um conjunto de poesias palacianas compiladas pelo eborense Garcia de Resende, secretário de D. João II. O valor dessa publicação reside na preocupação externada por Garcia de Resende em seu prólogo, por meio do qual apela ao futuro Rei de Portugal que, observe a importância de registrar e estimular a produção literária portuguesa como forma de afirmação da identidade cultural e da Língua, comparando a valorização da literatura e a preservação dos registros literários a feitos tão importantes quanto a expansão marítima que se intensificava.

Nas aulas de Introdução ao Patrimônio Cultural, aprendi os conceitos de categorias e valores do patrimônio cultural, sejam estes materiais ou imateriais. Para o trabalho final, escolhi apresentar um seminário sobre o Real Gabinete Português de Leitura, caracterizando-o nos seguintes elementos: quando foi criado; sua relação com a comunidade; seu estado de conservação; o motivo de ser considerado patrimônio cultural e a necessidade de sua preservação. A motivação para a minha escolha como estudo de caso se justificou pela vontade de unir os conhecimentos adquiridos na disciplina de Introdução ao Patrimônio Cultural e minha graduação em Letras-Português/Literaturas, sendo também uma forma de unir Brasil e Portugal em interesses comuns, quais sejam, além do legado patrimonial e cultural de imigrantes portugueses no Brasil, a valorização da Língua e da Literatura em Língua Portuguesa. Em um mundo antes do advento da internet, era o Real Gabinete Português de Leitura o polo de encontros e intercâmbio de publicações, contribuindo não só com a preservação de obras raras, mas também com o desenvolvimento de uma intelectualidade incipiente.

Por fim, as aulas mais especiais foram as de Cultura Portuguesa. Essa disciplina funcionou como uma espécie de síntese das relatadas anteriormente e balizadora para a minha experiência de intercâmbio acadêmico em Portugal. Nas lições do professor António Cândido Franco, o modelo de formação histórica de Portugal tem por base o hibridismo, contribuindo para a miscigenação característica do povo português e a diversidade de sua cultura. Estudamos, ainda, como a ocupação da Península Ibérica ao longo do tempo por diferentes povos, a saber, celtiberos, romanos, suevo-visigodos, judeus e árabes foi definidora das peculiaridades e da identidade dessa cultura. Cabe destacar, também nas lições do professor António Cândido, que a romanização ocorrida na Península Ibérica não está na origem direta da Cultura Portuguesa, contudo, quatro pontos se destacam como herança em sua formação: a língua (latim); a religião cristã; a economia agrícola e comercial e a organização administrativa romana. Em Évora, um símbolo remanescente dessa ocupação pode ser ilustrado por uma das principais atrações turísticas da cidade, o templo romano do século I localizado em frente ao Jardim de Diana, em um dos pontos mais elevados do centro histórico.

Relações e conexões

Templo romano de Évora

Sempre busquei, nas escolhas que fazia durante o intercâmbio, conectar e relacionar a minha experiência acadêmica, as disciplinas cursadas e as cidades que eu visitava. Foi uma experiência emocionante visitar Roma e seus principais monumentos e entender a magnitude daquele império que ocupou a Península Ibérica por séculos e cujo legado está presente até os dias atuais. Do mesmo modo, a presença de quase mil anos dos árabes na Península Ibérica foi de fundamental importância para a formação da cultura portuguesa. E assim se justificou o meu interesse em conhecer a cidade de Córdoba, na Espanha, situada a poucas horas de Évora. Córdoba também tem sua origem com a ocupação romana na Península Ibérica e podemos, ainda hoje, observar marcas dessa antiga ocupação bem como os da presença de judeus, muçulmanos e cristãos que conviveram pacificamente por séculos nessa região do sul da Espanha.
Além da imersão em Évora e das visitas a Roma e a Córdoba, visitei cidades do sul ao norte de Portugal, com destaque para Lisboa, Coimbra, Porto, Braga e Barcelos. Essa última, além do aspecto representativo para a história de Portugal como o local onde surgiu a lenda do Galo de Barcelos, um dos símbolos mais conhecidos do país, meu interesse partiu de uma motivação pessoal: Barcelos é a cidade natal do meu bisavô materno, que fugiu do seu país durante a Primeira Guerra Mundial para buscar uma vida melhor no Brasil.

E aquela que criticava os que sentiam saudades de casa, os que reclamavam da comida e do frio, eu fui exatamente todos os clichês. Chorava lembrando-me de Canção do Exílio do Gonçalves Dias (“Minha terra tem primores/Que tais não encontro eu cá” – definitivamente!), agradecia por ter um restaurante brasileiro na cidade e jurei nunca mais passar o inverno em Portugal. Mesmo assim, o período além-mar não foi só um lamento digno de um cante alentejano ou de um fado. Foi, principalmente, o desafio de sair da zona de conforto. De lidar com pessoas de línguas e de culturas diversas, de perceber as diferenças e de valorizar o que nos une. E apesar dos desafios de estar longe de casa, conseguir superar as dificuldades e levar o máximo dessa experiência. Também foi marcante morar com pessoas de países e idiomas diferentes, sendo o inglês a única língua em comum. Durante toda a minha vida, nunca havia morado com pessoas que não eram da minha família. Foi desafiador e gratificante na mesma proporção aprender, na convivência diária, costumes e hábitos diferentes dos meus e conseguir harmonizar a nossa vida em comum.

Segundo lar

Desde os primeiros dias, e mesmo antes de chegar à cidade, me propus a mergulhar na história e na cultura daqueles que me receberiam como intercambista. No início, o jeito mais contido dos alentejanos me inibiu um pouco, mas, rapidamente, adaptei-me à rotina em Évora. Em pouco tempo, os comerciantes acenavam com bom dia e boa tarde quando eu passava por eles e fui me sentindo acolhida. Pelo menos uma vez por semana, visitava o centro de promoção dos vinhos do Alentejo e me sentia quase uma local indicando as melhores atrações de Évora para os turistas que visitavam o espaço de degustação. O mesmo na Universidade de Évora; por diversas vezes, expliquei detalhes da história da universidade para os turistas, apresentei as salas, tirei fotos, enfim, queria que todos saíssem dali preenchidos com um pouco do conhecimento que eu recebi. E, se o sino da catedral me incomodava nos primeiros dias por tocar de quinze em

quinze minutos, logo se tornou a trilha sonora dos meus passeios explorando cada cantinho da cidade. Também não poderia deixar de falar dos sobreiros margeando as estradas na entrada de Évora. Foi inevitável reconhecer o cenário de Levantado do Chão, de Saramago, e não me emocionar ao lembrar a forte simbologia das páginas daquele livro. Quase ao final do período de intercâmbio, pude participar, com muita alegria e satisfação, de uma cerimônia realizada pela Câmara Municipal para conferir aos participantes dos programas de mobilidade internacional o certificado de Cidadãos Temporários de Évora (Youth Ambassadors of Évora) como forma de promover sua herança cultural e patrimonial pelo mundo. Sem dúvidas, Évora poderá contar para sempre com mais uma divulgadora e admiradora tanto da sua história quanto das pessoas fortes e batalhadoras que ali vivem.

Foi também em Portugal que aprendi tanto a origem etimológica da palavra saudade quanto todos os sentidos nela contidos desde os primeiros registros conhecidos até a sua acepção moderna. Mais um aprendizado das aulas de Cultura Portuguesa: como falantes nativos do português, sabemos que essa é uma palavra especial, sem correspondência exata em outro idioma e que, em um dos seus sentidos, reflete um sentimento contraditório ao produzir inquietação ou sofrimento quando nos lembramos de algo ou alguém distante ou inatingível, ao mesmo tempo em que produz satisfação pelo sentimento de esperança do reencontro. É muito mais do que sentir falta. A saudade que eu sentia da minha família quando estava em Évora e que me fez duvidar dos motivos para ficar (pensei em desistir algumas vezes), depois do meu retorno, transformou-se num imenso sentimento de carinho pela cidade. Acredito que os lugares por onde passamos se tornam uma parte de nós. E assim foi com Évora. Se fosse possível, como num passe de mágica ou teletransporte, gostaria de morar parte da semana em Évora e parte da semana em Niterói. As duas cidades agora fazem parte da minha história.

Considerações finais

Após essa experiência rápida de alguns meses, porém profunda, sinto que me tornei uma pessoa mais tolerante e aberta a novos desafios, além de mais experiente e segura para aproveitar a próxima oportunidade. Esses meses, em intercâmbio acadêmico, mudaram, sobretudo, a minha visão de mundo. Hoje, penso ser esse o maior aprendizado dessa experiência. Morar em outro país nos faz amadurecer em meses o que demoraríamos anos; a oportunidade de estar fisicamente em locais antes conhecidos somente por meio dos livros e das telas e de estar em contato com professores e alunos de outras instituições são experiências igualmente e significativamente engrandecedoras. Ao ampliarmos a nossa visão de lugar e de papel na sociedade e percebermos o que é verdadeiramente importante para nós, os reflexos dessa ampliação de horizontes e vivências contribuem diretamente para uma formação abrangente e humanizada, características que qualquer pessoa, independentemente da função que exerce, deveria desenvolver. Voltei com essa bagagem riquíssima e certa de que ainda há muitos caminhos a percorrer e desafios a superar, de forma que o período de intercâmbio foi um ponto de virada para meus próximos passos enquanto graduanda e, futuramente, como profissional.

Referências

DIAS, Antônio Gonçalves. Canção do exílio. 1846. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000100.pdf. Acesso em: 18 jan. 2021.

FRANCO, António Cândido Valeriano Cabrita. Apostila de apontamentos de cultura portuguesa (aproximação à génese e ao desenvolvimento de uma cultura do conflito; literatura e ideias no primeiro ciclo da cultura portuguesa). Évora: Universidade de Évora, 2019.

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