Como enriqueci a minha biografia
Beatriz Vilhena AlvarengaGraduada em Relações Internacionais pela UFF.
Foi intercambista na Concordia University (Canadá) em 2012.
Fazer mobilidade acadêmica no exterior é para poucos. O Brasil ainda não dispõe de uma distribuição de renda e acesso democrático à educação que permita essa experiência para a maior parte da população. Mas, eu tenho um orgulho enorme em saber que fiz parte de um processo de abertura das fronteiras da Universidade Federal Fluminense (UFF) para o exterior, de democratização da internacionalização em seus diversos aspectos. Foi um processo intenso, duro e bonito, muito beneficiado pelo momento político e econômico do Brasil e de sua política externa. Sigo na esperança de dias melhores.
Fiz o meu ensino médio no Colégio Pedro II, Unidade Centro. E isso mudou a minha vida. Quando entrei na UFF e, finalmente, fiz a minha mobilidade internacional, eu já entendia, na teoria, a imensidão do mundo e o quão pertencente a ele eu era. O Pedro II tem essa tradição de tornar seus alunos cidadãos conscientes da sociedade e da diversidade que a compõe. Foi nos meus anos de ensino médio que entendi, de forma muito ingênua, mas ainda assim genuína, que queria trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU) (clichê. Eles existem por um motivo). Fiz diversas simulações da ONU para estudantes do ensino médio, em que tomamos o lugar de um delegado representante de algum país em um órgão da instituição, estudamos e entendemos o posicionamento daquele país e pronto. Daí para a frente é tomar aquele ponto de vista para si e negociar. Ali eu aprendi muito sobre empatia, sobre olhar com os olhos do outro e lutar lutas que não eram minhas. Já representei a República Tcheca ao Chile, já participei de simulações do grande Conselho de Segurança, até momentos históricos como o Tribunal de Nuremberg. Durante essas experiências, eu vi que as fronteiras impostas no mundo são cruéis e não se limitam à divisão entre os países.
Quando fui para o Canadá, no segundo semestre do ano acadêmico brasileiro (mas primeiro do ano acadêmico de lá), eu já estava no mercado de trabalho há seis anos. Trabalhei em diversos cargos que não guardavam qualquer relação com “o que eu queria para minha vida”, mas que me ajudavam a viver a vida e contribuir para a circulação do dinheiro. Entrei para o curso de Relações Internacionais (RI) em uma Universidade particular, porque não havia nenhum, nas públicas do Rio, mas terminei pedindo transferência para a UFF na primeira chamada quando foi aberta a transferência externa. Apesar de já ter três anos e meio de faculdade cursada antes da transferência, preferi seguir em uma instituição que estava muito mais próxima do que eu acreditava para o mundo e para minha carreira.
Foi em novembro de 2011 que eu, terminando o 4º semestre de RI na UFF, soube de uma vaga de estágio na Diretoria de Relações Internacionais (DRI) da universidade. E ali começou o meu entendimento prático da imensidão do mundo e do quanto eu jamais poderia imaginar como pertenço a ele. Eu nunca tinha saído do país, apesar de a minha cabeça já ter visitado tantos deles. O sonho de trabalhar na ONU foi substituído pelo encantamento de contribuir para as vidas que por ali passavam, viabilizando uma experiência que ia mudar a vida deles e a minha. É claro que falo de uma perspectiva muito particular, de quem trabalhou e se beneficiou dos serviços prestados pela DRI (que hoje é a SRI) e não consigo imaginar falar dos benefícios da minha mobilidade sem fazer todas essa introdução que fiz, porque só fui estudar no Canadá porque, ao conseguir esse estágio, fui capaz de desconstruir a sensação de que fazer a mobilidade estava muito fora do meu alcance. E esta se tornou uma das minhas lutas diárias desde então. Mostrar a cada estudante que era possível e, quando voltei do Canadá, o fiz com ainda mais paixão, porque sabia que não só era possível, como era incrível. Um divisor de águas na vida de qualquer pessoa prestando a mínima atenção no que se passa em sua vida.
Como eu disse, nunca tinha viajado para o exterior quando consegui a vaga para estudar na Concordia University e tudo foi novidade. Nunca tinha tirado passaporte, nunca tinha feito um teste de proficiência internacional e nem juntado todos os documentos que a embaixada canadense pedia para o visto. Mas desde a decisão de me candidatar, eu já ganhava outra postura com a vida. Já sabia do investimento financeiro necessário, de tanto ver isso no dia a dia do estágio, e sabia mais do trabalho e da relação quase diplomática envolvida no processo de candidatar um estudante da sua instituição para representá-la em outra, no exterior. Esse peso nem todo mundo carrega, claro. Acredito que esteja diretamente relacionado ao fato de que eu estava ali dentro e via como era suado conseguir cada vaga para cada estudante e como as histórias dos estudantes eram diversas e envolviam esforço e renúncias muito particulares.
Talvez o que tenha sido mais impactante, ainda nesse início, foi perceber que apesar de nunca ter saído do país até ali, eu finalmente sairia. Dos mais de 30 mil estudantes da UFF, menos de 300 fizeram mobilidade naquele ano, se não me falha a memória. Todos os outros seguiram sua rotina sem, muitas vezes, saber que existiam bolsas que poderiam amenizar a dificuldade financeira para viver essa experiência. Isso mudou um pouco com o Ciência sem Fronteiras, mas essa é outra história.
O processo de aplicação para a Concordia University foi cheio de altos e baixos e um jovem estudante médio talvez sinta a pressão. Eu senti. Fiz o teste de proficiência do inglês e tirei 90. Concordia exigia 90. Uma etapa tinha sido vencida. Mas ainda tinha a espera interminável pelo aceite, que chegou, mas não veio acompanhado da bolsa para a qual havia me candidatado em paralelo. Esse foi um golpe doído. Estava indo com cada centavo contado para dar certo. Eu disse que trabalhei durante muitos anos antes disso, não disse? Mas vivia com meus pais esse tempo todo, então sempre tinha onde me abrigar. Se decidisse ir para o Canadá sem a bolsa, não ia ter o teto e a comida dos meus pais garantidos todos os dias. Valia a pena correr esse risco? Fiz muitas contas, sofri um bocado por antecipação, consegui alguma ajuda e decidi me jogar. Ainda bem. Cada desafio desse processo inicial, e isso era algo que eu falava para os alunos, quando voltei da mobilidade e segui trabalhando na DRI, é um preparo para tudo que você vai viver quando estiver no exterior.
Tudo pronto. Muita pesquisa na internet, muita dúvida na hora de escolher uma acomodação, inseguranças mil, mas nenhuma dúvida de que era o grande momento da minha vida, então embarquei. Fui no mesmo voo que uma amiga, que ia para uma cidade a uma hora e meia de Montreal. Nenhuma de nós duas havia saído do Brasil, servimos de apoio uma para a outra antes, durante e depois, quando batia a saudade daquele mundo paralelo que vivemos.
Se alguém perguntar à minha família, vão dizer que eu “fui abduzida” no Canadá e voltei outra. É o jeito deles verbalizarem as mudanças que essa mobilidade me provocou. Foram cinco meses fora, voltei no dia em que ia acabar o mundo, 21/12/2012. Talvez aquele mundo que eu conhecia e que deixei aqui tenha mesmo acabado pra mim. Os perrengues que passei, as pessoas que conheci, os lugares que visitei, as aventuras que escolhi viver, as possibilidades que se apresentaram. Tudo isso me transformou e é o que vou contar agora.
Eu, primeiro, aprendi que precisaria ter fé nas pessoas. Cética como sou, mas radical como era, tive dificuldade em entender que havia pessoas em quem efetivamente poderia confiar sem que isso se transformasse em uma relação monetária. Reservei um quarto em um apartamento cheio de estudantes, ainda do Brasil e o dono do apartamento se ofereceu para buscar minha amiga e eu no aeroporto. Hoje, lendo isso, percebo o potencial risco, mas naquele momento eu só confiei. E ter dado tão certo me ajudou a entender que existe esse outro tipo de relação humana, que não me era tão familiar. Minhas bagagens foram extraviadas e, além de ficar horas no telefone, em inglês, com a companhia, tive que comprar algumas roupas. Esse senhor, gentil que era, nos levou a uma loja de roupas de segunda mão para que eu comprasse algumas peças temporárias. Outro aprendizado. Lojas enormes de roupas de segunda mão? Os brechós aqui no Brasil eram pouquíssimos na época e não estavam tão “na moda”. Perceber como as pessoas vendiam suas roupas e eram disponibilizadas em ótimo estado e preços baixinhos para que outras pessoas tivessem acesso foi bonito demais de ver e uma das primeiras coisas que o Canadá me mostrou. Não acumular e fazer circular na sociedade. É como eu disse no início do texto, eu tinha uma ideia disso na teoria, mas na prática não tinha visto. Se já não era uma acumuladora profissional, de lá pra cá perdi as contas de quantas vezes vendi e doei tudo o que tinha e comecei do zero de novo. Não é para todo mundo, mas me dá uma sensação muito boa.
Passada a turbulência das malas, minhas aulas iam começar e eu, tímida que sou, entendi que se não me jogasse, o inglês não ia destravar nunca. O Ciência sem Fronteiras estava recém-implementado naquela época, mas a colônia de estudantes brasileiros já era suficiente para nós conseguirmos ficar confortáveis naquela bolha e não a extrapolar.
A colônia de estudantes brasileiros merece, também, destaque. Porque ali se fortaleceu muito de um orgulho que eu sempre tive, mas não sabia bem como era. Eram outros tempos e nós andávamos com nossas bandeiras do Brasil por todos os cantos em que íamos. Uma alegria sem fim de representar esse país que possibilitou nossa estada no Canadá, orgulhosos de sermos bem recebidos e reconhecidos como um povo gentil (sin piernas, pero que camina) de um país que todos sonhavam conhecer. Fizemos, deste grupo de 10 a 15 estudantes, lar. Nos encontrávamos uma ou duas vezes no mês para fazer feijoada (que eu não gostava quando estava em casa, mas que tinha o melhor sabor de casa quando estava viajando) com farofa, brigadeiro, beber guaraná Antártica e cachaça (outra que eu também nunca fui muito chegada). Pode parecer bobo, mas recarregava as energias para apreciarmos as diferenças.
O Canadá é um país que recebe muitos imigrantes, estudantes ou não. Montréal, então, uma das maiores cidades do país, geograficamente distribuída em bairros ingleses e franceses e extremamente cosmopolita. Eu fui sem falar uma palavra de francês, mas era recebida em cada loja que entrava com um simpático “Bonjour, hi!”, de onde se espera que a pessoa responda no idioma de sua preferência e daí segue-se a conversa. Eu não conseguia imaginar um atendimento mais simpático e eu não sei se acontece com as outras pessoas, mas eu fui me desmontando inteira dos muros que tinha na minha cabeça com tanta gentileza, boa vontade, senso de comunidade e cuidado com o outro. Isso se expressava desde o atendimento no escritório internacional da faculdade, até o vendedor da pizzaria baratinha que tinha na estação do metrô. Que delícia foi não me sentir uma estranha e não receber olhares tortos por conta do meu sotaque.
Tem uma coisa boba que eu tenho na memória, logo que cheguei e comecei a passear pela cidade. Notei o quanto eles tinham chafarizes, riachos e espaços aquáticos para crianças brincarem, tudo isso no centro da cidade. Eu olhava e ficava impressionada com a forma da utilização da água para o entretenimento e embelezamento urbano. Eram espaços de concreto, que soltavam esguichos de água de tempos em tempos e as crianças, em pleno verão canadense, brincavam até cansar.
Até hoje me pego pensando por que o Brasil, tão bem servido de água, não usa mais disso, mas é claro que são cenários sociais completamente diferentes. Ter a possibilidade de observar o diferente, reconhecer que não é a mesma coisa e pensar formas de adaptar isso para a minha realidade também foi algo que trouxe comigo dessa experiência. E isso não foi só com o aproveitamento da água nos espaços urbanos.
Dividi o apartamento com uma canadense de Ontário e uma italiana, que vivia mais em Nova Iorque do que em Montreal. Entender os costumes de cada uma de nós, as diferenças e como faríamos isso funcionar para manter a casa limpa e organizada foi um desafio, mas que só me trouxe benefícios. A canadense, que eu poderia imaginar que tinha uma vida mais tranquila ali, já que não tinha vindo de outro país, era a que tinha a vida mais corrida, porque ela estava vivendo o dia a dia dela e não em um intercâmbio, então não existia, na rotina dela, uma licença pelo “estado de exceção”. O meu dia a dia era muito mais flexível e eu me permiti ser menos chata e regrada com questões de organização e distribuição de tarefas. Não sei nem dimensionar como isso me fez uma pessoa mais leve dali para frente.
Outubro foi chegando com uma leve nevasca seguida de um veranico, que é uma semana de outubro em que o clima nos dá a oportunidade de nos despedirmos do calor e embarcarmos, de vez, no frio. Foi no inverno canadense, com direito a metro de neve na calçada, que eu entendi que o extremo inverno não é só a neve linda e branquinha e um belo casaco. O frio não é só sobre ter uma cidade extremamente preparada, uma universidade que se conecta pelo subterrâneo, para não precisarmos nos expor aos -20° C e pontos de ônibus aquecidos. Aquele frio é sobre uma cultura completamente diferente da nossa, é sobre ficar em casa mais do que tudo, tomar chá, socializar muito menos do que estava acostumada, sobre abrir estações de metrô e abrigos para receber quem não tivesse onde se aquecer e sobre suicídio. Porque um frio extremo como aquele, que exige uma reclusão cansativa e solitária por tantos meses, não é para todos.
Uma escolha que fiz antes de viajar e que talvez não tenha sido das melhores foram as disciplinas que iria cursar em Concordia. Eu sabia que faria francês, porque achava um desrespeito voltar do Canadá só com o meu “bonjour”, mas e o resto? Embarquei de vez no meu estado de exceção e fiz disciplinas que me interessavam e não teria a oportunidade de fazer na UFF. E esse é um conselho que dei para cada um dos alunos que aconselhei depois disso. Fui para o intercâmbio sem contar os meses que isso adiaria a minha formatura e é o que recomendo para todos, porque a menos que da sua formatura dependa o sustento da sua vida, o intercâmbio vale cada segundo adiado da colação de grau. Aprendi não só sobre Direito Internacional sob a perspectiva canadense (e com professor americano), ou sobre os conflitos recentes do Oriente Médio, que me permitem, hoje, fechar os olhos e ver o mapa inteiro da região na cabeça. Aprendi todas as coisas que já disse aqui neste artigo e mais, coisas que eu talvez nem tenha me dado conta. A única coisa que não aprendi, mesmo, foi francês, mas até nisso eu entendi que era preciso respeitar os meus limites e isso não representava qualquer desrespeito com os moradores de lá.
Durante a mobilidade, consegui fazer, ainda, algumas viagens curtas para cidades próximas e isso, tanto quanto as viagens dentro do Brasil, me deram a dimensão da diversidade que compõe o Canadá e o mundo. Enquanto Montreal era uma cidade enorme para os padrões canadenses e com influências inglesas e francesas, Ville du Québec é francesa até o último tijolinho e só fala francês, enquanto Ottawa tem um aspecto muito mais inglês e segue este mesmo idioma. Eu não sei se escrevendo consigo passar isso, mas é belíssimo entender que eu nunca tinha saído do país e consegui ver, viver e trocar com pessoas de todos os continentes e conhecer lugares tão diversos e lindos em uma única viagem.
Voltei para o Brasil outra. Mudei o corte do cabelo antes mesmo de voltar, inconsciente de que era um movimento tão significativo da nova vida que eu estava abraçando. Com a certeza de que o Brasil era o meu ninho, mas que não deixaria de voar pelo mundo afora nunca mais. A partir dali fiz muitas viagens e um mestrado fora do país, mas das coisas que guardo com mais carinho: eu trabalhei com muito mais amor, com muito mais vontade de que cada estudante pudesse ter acesso àquela experiência e que fossem conscientes de que não era “apenas” uma experiência acadêmica.
Sim, meu inglês ficou incrível. Sim, eu aproveitei as disciplinas como atividade complementar. Sim, isso pesou no meu currículo quando mudei de emprego. Mas, eu entendi, no auge da minha presunção dos vinte e poucos anos e de forma inexorável, que a vida é muito mais do que eu imaginava, que há muito mais para se viver. E me permiti. Obrigada, UFF, por me permitir também.