Caminhos sem mapas, trajetos incertos: experiências de uma mobilidade internacional

Arildo dos Santos Amaral

Graduado em Pedagogia pela UFF.

Foi intercambista na Universidad Nacional de Villa María (Argentina) em 2014.

Aconteceu assim, de repente. Aquele jovem que vinha de uma cidadezinha pequena do interior do Estado do Rio de Janeiro havia passado em um edital para a realização de um intercâmbio no exterior. Devo te contar que ele ficou muito feliz com a notícia, porém o medo e a insegurança também o envolveram. O jovem se perguntava como seria viver não agora em outra cidade, mas sim em outro país.

Aquele jovem aceitou o desafio. Quanto ao lugar que escolheu, não poderia ter sido melhor. Villa Maria, uma pequena cidade da Argentina, que de início pode não chamar a atenção daqueles aficionados pela agitação de Buenos Aires, mas que aos poucos vai se revelando um lugar encantador. Lá há espaço para aqueles que preferem desvendar a cidade e sua cultura (como a arte, danças, culinária etc.).

Em seis meses de intercâmbio, o jovem vivenciou muitas coisas: lugares inesquecíveis, pessoas inesquecíveis e situações impossíveis de retratar com fidelidade. Só quem tem a oportunidade de vivenciar a cultura de outro lugar, como se pertencesse a ele, pode entender as “marcas” eternas deixadas por esta experiência.

Foram meses de vivências profundas e intensas, pois se encontrar imerso em outra cultura era viver ao mesmo tempo sob dois planos: o da novidade e do desafio. O jovem estava vivendo em um país completamente diferente do seu de origem, eram comidas, hábitos e costumes distintos. O desvelar das coisas e das pessoas se confluía com o desafio de viver, ou melhor, de sobreviver em um país que não fala seu idioma.

Falar espanhol? Isso mesmo, esse rapaz não falava. Quando chegou a Villa Maria, pensou que ia “enlouquecer”, pois não compreendia o que as pessoas falavam. Mas, os dias foram passando e a necessidade de aprender aumentava ao decorrer dos dias. O idioma foi fluindo e o jovem aprendendo na prática, no cotidiano daquele lugar que o atravessava.

Devo mencionar que o jovem viveu muitas coisas, foram viagens, longas noites de estudos, pesquisas e grandes descobertas. Os benefícios de um intercâmbio vão muito além de um simples aprimoramento de uma língua estrangeira. É o amadurecimento e o aprendizado de uma forma geral que vêm como um bônus, mas que na realidade é o que realmente importa.

Ele conheceu pessoas que o fizeram rever os conceitos de amizades, esteve em lugares que pode chamar de paraíso e tudo isso aconteceu tão rápido. Aquele rapaz tem muito a agradecer a todos que proporcionaram esses momentos. Deixou em Villa Maria os seus melhores meses e os melhores sonhos. Largou amigos e grandes amores também. Ou melhor, trouxe com ele tudo isso e todos esses que hoje reconhece nele.

(Memórias de Arildo Amaral, 2014)

Caminhos sem mapa, trajetos incertos. O jovem da história narrada acima é o autor deste exercício, é quem vos escreve. Inesquecível, esta é a palavra mais óbvia, mas ao mesmo tempo a mais verdadeira que pode ser usada para descrever a experiência do meu intercâmbio no exterior. Não sou mais aquele rapaz vindo de uma cidadezinha pequena, talvez, pois já vivi tantas coisas. Hoje sou narrador da minha própria história, da minha experiência pessoal e, consequentemente, profissional.

Lançar-se à experiência, esse é o convite. Experiências entre as artimanhas do cotidiano da graduação atravessada por uma mobilidade internacional. Linhas e rabiscos vários… estilhaços, pensamentos, tropeços do escritor, que, aqui, foi arrumando este tecido.

Escrever sobre as vivências de uma mobilidade internacional será sempre uma aventura existencial e coletiva de intervenção no mundo. São mãos inquietas movendo-se: uma composição que se faz na experiência de mobilidade acadêmica, que por sua vez permite palpitar vida nos espaços universitários.

Nesta escrita compartilhada podemos nos tornar outra coisa, ninguém se torna mais o mesmo no plano das exterioridades – outros nos tornamos, somos multiplicados.

Os editais de Mobilidade Acadêmica Internacional América Latina, possibilitam aos estudantes de graduação da UFF que participem de programas de assistência estudantil com mobilidade acadêmica internacional em instituições de ensino superior estrangeiras, na América Latina, com as quais a UFF mantém acordos. Este programa possibilitou experiências únicas em minha formação. Ao longo de seis meses, vivenciei ressignificados profissionais e, sobretudo, de mundo.

Assumir a escrita de uma experiência internacional implica estar em contato com muitas inquietações, o que me faz refletir sobre a hospitalidade; sobre os limites entre o eu e o outro; pensando no que eu sou para o outro e o que o outro é para mim na sua singularidade e corporalidade; nas demandas dirigidas ao estranho que se apresenta em nossa casa, em nossa cultura. Esse é o desafio de pensar como é viver em outro país e viver a cultura dele como se pertencesse a ele. Uma análise que passa pelo paradoxo da diferença entre o estrangeiro e o “natural”.

Com as minhas diferenças, pude estudar em outra universidade, perpassar por outras cidades e países, sendo “engolido” pela hospitalidade daqueles que hoje trago em mim enquanto pessoa produzida historicamente. Estava estudando educação em outro país, em outra universidade, cursando outras disciplinas.

Quando passei no processo seletivo, no ano de 2013, estava cursando o 7° período de Licenciatura em Pedagogia. Terminei o 8° período em 2014 no primeiro semestre e, no segundo, viajei. Só faltava, para integralizar o meu currículo e receber o grau de Pedagogo, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que já tinha um tema de interesse: “Pedagogia Hospitalar”.

Ao chegar, em meu destino de estudo, à cidade de Villa Maria situada em Córdoba – Argentina, o desejo de entender o trabalho pedagógico realizado nas enfermarias hospitalares daquele lugar estava em mim permanentemente. Busquei pessoas e hospitais próximos. Encontrei nas redes sociais um hospital acerca de onde estava residindo. Pesquisando sobre ele, constatei que nele havia classes hospitalares. Fui logo buscando contato com alguém que trabalhava naquela instância. Encontrei um rapaz que era responsável pelo regime de contratação dos servidores daquele hospital, que recebia o nome de Hospital Regional Dr. Louis Pasteur.

Fiz o primeiro contato me apresentando como estudante brasileiro em intercâmbio na Universidad Nacional de Villa Maria, e que trabalhava com educação hospitalar no meu país e, que se possível gostaria muito de conhecer a potencialidade desse trabalho na Argentina, mais especificamente naquela cidade em que me encontrava. Assim, educadamente esse rapaz agendou um dia para minha visita ao hospital.

E o dia da minha visita naquele hospital havia chegado, agora com olhar de pesquisador, levava comigo algumas questões para possíveis respostas, ou não, sobre a estruturação das classes hospitalares que já fazia parte daquela paisagem. Adentro aquele recinto para conhecer aquilo que de fato havia me levado até ali. Busquei pelo rapaz que havia entrado em contato comigo. Ele não estava presente, mas havia deixado agendado com a pediatra do hospital e com a professora da classe hospitalar uma possível conversa comigo. Então, fui direcionado até o consultório médico daquela pediatra onde em seguida iria conhecer a educadora hospitalar, bem como a classe propriamente dita.

O dia tão esperado acontecia! Foram horas contadas e imaginadas. Estava ali na minha frente uma pediatra que narrava sobre a importância do trabalho pedagógico realizado no hospital, sobre a relevância desse atendimento para o tratamento de saúde do sujeito enfermo. A relação educacional com a saúde é muito importante porque as crianças se afastam da sua vida cotidiana, dos seus jogos, das suas brincadeiras. E o educador, assim como os psicólogos ou assistentes sociais aproximam de alguma forma as crianças com essas questões.

(Diário de Pesquisa, 29 out. 2014)

Ao terminar minha conversa com a pediatra, fui direcionado à sala de aula onde as docentes realizavam seus trabalhos. Ao chegar à sala, estava à minha espera uma das docentes hospitalares. Abria-se naquele momento um turbilhão de sentimentos e sensações. Estar naquele hospital, agora naquela sala onde se realizava o trabalho educacional com crianças enfermas, foi algo que desejei muito. Para minha conversa com a docente, optei em realizar um questionário com algumas perguntas abertas.

E ali estava eu, em uma enfermaria pediátrica, abstraído do vento lá fora. A ação de estar naquele lugar me conduzia para possibilidades e impossibilidades. Abria-se o conhecimento mais autêntico, o único que de verdade, nem sabe nem pode jamais saber: o de não saber como se continua o presente, pois eu já não era mais o mesmo. A leitura daquele lugar havia me conduzido a infinidades de sensações do mundo, que se deixou escrever em um gesto indecifrável pela abertura de um saber que não ocupa espaço, mas torna-se o ser de grande vulto.

(Diário de Pesquisa, 29 out. 2014)

Com efeito, a experiência vivida nessa mobilidade internacional possibilitou a articulação entre a teoria e prática no processo de construção do conhecimento, ou seja, a dimensão da prática – que é constitutiva da educação – foi fonte e lugar privilegiado da pesquisa de conclusão do curso de Pedagogia. Além disso, a própria investigação se converteria em ação, em intervenção social, possibilitando ao pesquisador uma atuação efetiva sobre a realidade estudada.

Entre dias e noites, um frio intenso, vivi uma experiência incrível conhecendo uma cultura tão distinta… a cumbia como ritmo musical e envolvente, o mate como a bebida preferida, extrema pontualidade, pão em todas as refeições, o melhor churrasco, o arroz e o feijão como pratos quase extintos do cardápio argentino.

Na Universidad Nacional de Villa Maria, cursei três disciplinas: Psicologia Social, Sociologia do Trabalho e Trabalho e Cultura, disciplinas que me aproximaram de pessoas da universidade. Hoje, percebo que o trabalho acadêmico e o convívio com os amigos da turma eram os principais interesses daqueles que estudavam lá, com reuniões na parte da tarde na Costaneira da cidade para tomar mate e/ou fernet.

Além da bagagem de aprendizagem acadêmica que o intercâmbio proporcionou em minha vida, existe toda carga de emoções e situações que que vivi com o grupo de amigos que criei lá, em especial, outros intercambistas, de outras nacionalidades, tais como: alemães, chilenos, bolivianos, peruanos etc.

No que concerne a esse período de estudos e olhares investigativos em outra universidade sediada em um país irmão, destaco que contribuiu sobremaneira para potencializar minha vida acadêmica, atribuindo novos olhares e maneiras de ler e encarar o mundo, de pensar a pedagogia enquanto ferramenta de reflexão e ação para o desenvolvimento humano.

Fio a fio vão costurando em diferente espaço-tempo as experiências de formação vividas no intercâmbio internacional, que fizeram e fazem parte da minha travessia docente. Essas narrativas configuram-se possibilidades e pistas para o conhecimento de si e do outro. Utilizá-las como prática curricular emancipatória constitui-se como um caminho possível contra os fluxos da hegemonia excludente e dos saberes instituídos.

Durante o período que estive na cidade de Villa Maria, tive a impressão de um povo determinado, pois as pessoas com quem convivi eram disciplinadas em suas atividades e mantinham foco naquilo que produziam.

No convívio social, a impressão que tive sobre a característica do argentino é de um povo muito educado, pronto para ajudar quando for solicitado, mas também muito sério, fechado e reservado em seu dia a dia.

As experiências vividas nesse intercâmbio refletem significados em minha prática profissional, pois viabiliza uma relação outra com os saberes e com os símbolos que atravessam o plano existencial e os campos de força.

A oportunidade de intercâmbio na Argentina me trouxe um ganho de conhecimento muito além das minhas expectativas e objeto da viagem, pois além da aprendizagem da língua espanhola, me permitiu também a experiência de conhecer como o país administra seus problemas e trata suas questões sociais, promovendo igualdade, respeito e oportunidades de trabalho aos seus cidadãos.

O desenrolar das tramas que aqui foram mencionadas, são tramas da vida, que anunciam a existência de singularidade e protagonismo frente a um intercâmbio internacional. A escritura daquilo que já está em mim me permitiu viver a experiência da escrita pessoal e de formação. Experiências narradas sem linearidade, um devir (des)formação, um modo de produzir as mais belas cenas do “saber viver”.

Cada lembrança, cada narrativa, cada experiência, cada “fio”, vão tricotando a teia da vida e arrumando o nosso modo de viver e ser no mundo, como uma espécie de tear de vários fios que harmonizam entre si. A cada movimento das mãos, no ato de se construir e (re)construir, minhas memórias se deslocam para as ações vividas no passado de uma mobilidade acadêmica no exterior, refletindo hoje em meu ofício docente.

Nesse sentido, a experiência vivida ainda em 2014, coloca-se como possibilidade de formação pessoal e profissional. As transformações vão acontecendo em todas as dimensões e a escrita de nossas vivências vai acontecendo de forma emancipatória, ética, estética e política, delineando os caminhos de nossas aprendizagens e os compartilhamentos necessários e possíveis.

A narrativa experienciada, na mobilidade acadêmica em questão, advém da multiplicidade cultural, não pela via da produção dual, pelo binarismo, pelas simetrias e dicotomias. Pensar essa multiplicidade revela rachar esses princípios totalizantes. Essa experiência de mobilidade internacional plural deve desprivatizar as práticas culturais homogêneas, ou seja, deslocando todos os sujeitos que gravitam nesse processo, apurando nossas escutas, relativizando nossas certezas epistemológicas e políticas, nos reconhecendo nas diferenças. Um espaço delineado dentro do qual os autores assumem modos de dizer, de se (re)afirmar. Uma abertura às possibilidades de vida, uma variação para o devir-universidade, devir-intercâmbio, devir-mobilidade, devir-outro.

Assim como um passageiro de um trem, viver uma mobilidade acadêmica foi como lançar-se às estações para o fazer e o deixar fazer. E, como um passageiro de um trem que deixa sua cidade em busca de outros voos, carrego comigo tudo aquilo que aprendi na certeza que ainda aprenderei muito.

Ocupei-me em afirmar, aqui, uma escrita experiência vivida no percurso da graduação, que pelas ações micropolíticas do cotidiano da Universidade Pública, gratuita e socialmente referenciada me possibilitaram conhecer “outros mundos”. Um espaço de vivências que se ancora nas potências singulares dos estudantes, trazendo à tona arranjos de afeto, alegria, amizade e esperança, valores que perpassam toda ação de ensino, pesquisa e extensão universitária.

Para que essas experiências continuem ecoando no mundo, friccionando e interrompendo a cada leitura e (re)leitura. Que continuem produzindo outras boas mobilidades acadêmicas… Potentes… Significativas… Únicas…

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