Bota a cara no Sol, mona

Helena Andrade Teixeira Azevedo

Graduada em Relações Internacionais pela UFF.

Foi intercambista na Universidad de La República (Uruguai) em 2018.

Sem querer me apropriar do bordão, mas ele foi a frase chave quando paro para contar sobre o intercâmbio no Uruguai, em 2018. Pode parecer contraditório, pois o país não tem um grande índice UV e pode até ter uma paleta de cores um tanto acinzentada. No inverno, principalmente, é quando o sol se esconde e a neblina e a chuva se fazem mais presentes do que o céu azul. Ainda assim, estar em um novo espaço demanda se fazer conhecer para então poder também conhecer. E para isso, pôr a cara no sol é justamente a metáfora sobre se fazer presente com coragem, boas intenções e quando possível, contando com um pouco de sorte.

Assim, para mim, mobilidades e intercâmbios carregam muito de uma possibilidade de mão dupla: Encontrar, conhecer e desbravar o diferente ao mesmo tempo em que nos identificamos cada vez mais com o que nos define. Por essa razão, relato aqui um pouco daquilo com o qual me encontrei na diferença pois, é através de alguns desses relatos que conto um pouco sobre as perspectivas abertas por uma experiência de estudos no exterior. Isso porque, desde o momento da escolha, a opção pela Universidad de La República, na capital de um país cuja população total equivale à população de alguns bairros da cidade do Rio de Janeiro foi motivada por razões políticas.

O Uruguai apesar de pequeno ou, em razão disso, é um país de vanguardas políticas, de gente próxima geográfica e culturalmente ao Brasil, mas com propostas, ideias e contextos bem diferentes. A cidade de Montevidéu, apesar de capital, me pareceu uma cidade pequena, de gente sem pressa e cheia de idosos ocupando as praças e dançando tango sempre que possível. A segurança de um país pequeno, próximo do Brasil e que chama a atenção ao se destoar da realidade de muitos países vizinhos foi o que me motivou na escolha. Além disso, é um país aberto a receber imigrantes e, com facilidade para residência aos cidadãos de países do Mercosul. Por que não?

Através das histórias que vivi, posso me fazer entender sobre a importância das perspectivas de uma mobilidade em vários aspectos. Isso porque não se trata apenas de conhecer outro idioma e se tornar fluente nele, por exemplo. Conhecer outros locais, ainda que próximos, abre horizontes em diferentes nichos. Assim, sobre encontrar, conhecer e desbravar, eu apresento aqui alguns contextos que fizeram da experiência de estudar fora um grande divisor de águas, sejam por razões pessoais, profissionais ou acadêmicas. Assim, três relatos especiais da minha experiência no Uruguai em muito resumem o choque e a riqueza cultural que mesmo um país vizinho é capaz de proporcionar.

Uma das primeiras curiosidades no contato com o país foi tomar conhecimento sobre o lema de uma das bandeiras oficiais: Libertad o Muerte. Pois então, meu primeiro grande contraste foi conhecer a história da independência do Uruguai. Como símbolo em paralelo, o Brasil possui a bandeira com a expressão Libertas quae sera tamen. Em tradução do latim, o lema marcado na história como símbolo da independência brasileira é “Liberdade ainda que tardia”. Por outro lado, o Uruguai honra os “33 Orientais” responsáveis pela bandeira cujo lema é “Liberdade ou Morte”. Este grupo de homens atravessou o delta do Rio de Prata desde Buenos Aires para proclamar a independência da então região das Províncias Orientais, que no período estavam sob domínio brasileiro, em 1825. No Brasil, o herói símbolo do movimento nacional, Tiradentes, foi enforcado e não é só aí que a história se difere.

Tendo estes contextos históricos à parte, aprendi muito sobre o peso dos simbolismos, das metáforas e das referências na formação identitária de uma nação. Ora, e haveria diferença maior do que ambas as bandeiras e as histórias por detrás destas? Reconheço aqui uma perspectiva um tanto romantizada e particular, mas enquanto internacionalista, foi o contraste neste aspecto que me fez atentar então sobre as diferentes narrativas de ambos os países. Narrativas que têm histórias, contextos, influências e idiomas diferentes. De repente, a ideia do diferente toma forma, ganha nomes, detalhes, curiosidades para além das exposições de aulas ou páginas de livros.

Assim como Brasil e Uruguai possuem seus contrários nas próprias histórias de independência, ambos também conviveram com períodos de ditadura militar. E é neste segundo paralelo que segui encontrando diferenças na perspectiva dos contrastes cultural, histórico e político. Sobre este segundo relato não foco nem tanto na parte histórica, dos horrores e histórias da ditadura uruguaia contados em parte na literatura de Eduardo Galeano. O que me fez perceber mais um grande contraste foi o desenrolar mais atual dessa parte da história. Assim, se anteriormente estudei em Relações Internacionais sobre as influências, razões e comunicações entre as ditaduras da América Latina, foi no intercâmbio que eu observei os diferentes reflexos dessa história.

Este segundo relato, para mim, segue ainda sob os meus olhos pessoais de observadora de contextos políticos. Assim, se, por um lado, a Argentina tem “Las Madres de Plaza de Mayo”, o Uruguai possui a Marcha do Silêncio. Em homenagem aos desaparecidos durante a ditadura militar, todos os anos, a cada 20 de maio, uma grande passeata ocupa a principal avenida de Montevidéu, completamente em silêncio. Digo isso e compartilho aqui a história pois antes de tudo, ressalto que o uruguaio, para mim, não segue um perfil de muitos levantes, passeatas e grandes movimentações.

Em suma, em seis meses no Uruguai, fui realmente pega de surpresa pelo peso que é a Marcha do Silêncio. Não havia visto, antes, tanta gente reunida e de todos os gêneros, idades ou classes. E nunca estive em meio a tão grande número de pessoas envolvidas no mais absoluto silêncio. O silêncio em respeito, em luto e em honra aos desaparecidos. E faz com que as palavras de fato sejam desnecessárias para que uma história jamais seja esquecida ou repetida. E todo o evento com a intenção de não deixar cair no esquecimento as pessoas, a história e a violência do período ditatorial. O uruguaio honra sua própria história, ainda que não deixe de reconhecer também o lado mais sombrio dela.

Excursão de estudantes estrangeiros no Uruguai – Parque Nacional de Santa Thereza, abril de 2018
Da experiência, no geral, sinto que os uruguaios exercem um alto nível de empatia. E isso é ainda mais perceptível, por exemplo, quando se é um tipo de imigrante em outro país. Conto como anedota como toda uma multidão de pessoas reunidas em frente à Prefeitura de Montevidéu para assistirem a uma partida do Uruguai pela Copa do Mundo de 2018, projetada em um telão, sentaram após iniciativa de ser a primeira a sentar. É reconhecer no silêncio e no exemplo que, para todos poderem assistir ao jogo, independentemente da posição e da estatura de cada um, basta que estejamos nivelados ou sentados. E foi nesse mesmo telão que fotos e nomes dos desaparecidos políticos foram expostas durante a Marcha do Silêncio. E é com a mesma empatia no ar que experimentei e reconheci como os uruguaios carregam sua própria história. Um grande contraste, não?
Por fim, um terceiro momento marcante na minha curta his- tória de mobilidade acadêmica foi a Fanfarria Invernal. Pois bem, comecei o texto mencionando os tons acinzentados que Montevidéu carrega, e não foi à toa. De fato, o inverno é um grande evento para os moradores e eu, como interiorana fluminense e, acostumada ao calor, sequer tinha roupas para esse evento. O inverno uruguaio altera a oferta de frutas e os preços na Feria de Tristán Narvaja. E também altera o humor dos uruguaios. Não há índices públicos, mas foi nas ruas e junto a outras pessoas que descobri que o índice de suicídios aumenta no inverno. A falta de sol influencia muito os humores. Imigrantes da Venezuela, Cuba ou outros países mais próximos à Linha do Equador podem certamente confirmar isso. E foi assim que descobri outra interpretação para a necessidade em colocar a cara no sol.

E, ainda no espírito da empatia e com a finalidade de receber o inverno com alegria, ocorre anualmente a Fanfarria Invernal! Assim, desmistificando um pouco o peso da estação e colaborando com os humores da cidade. Este evento leva as pessoas às ruas simplesmente para celebrar a chegada do inverno! Ocorrem saraus de poesia, shows, pintura, dança, desfile de palhaços e muita cor. A proposta é acolher principalmente pessoas em situação de rua, pois são as mais castigadas pelo frio, pela umidade e as frequentes chuvas da época. Além disso, nos faz refletir sobre o cotidiano privilegiado de ter um teto, uma cama e uma sopa quente. Com isso, a proposta é compartilhar a alegria e atentar para a empatia necessária para atravessar o período.

Eu poderia seguir aqui contando relatos sobre o carnaval no país, sobre os museus, os memoriais, sobre as artes visuais e outro tanto de referências bem absorvidas na experiência como intercambista. Poderia falar sobre o perfil portuário de Montevidéu, sobre as influências orientais na cultura local e, mesmo, sobre a questão econômica e vulnerável do país. Poderia falar sobre a geografia urbana e o planejamento da cidade, o grande número de praças e a real ocupação delas pelos moradores. Mas talvez todos estes fatos sejam mais jornalísticos que relatos pessoais sobre o impacto do intercâmbio no contexto acadêmico de um estudante então, sigo.
Oficina de imagem – Jornadas de Debate Feminista, Montevidéu, julho de 2018
Para além dos relatos e contextos, um intercâmbio abre novas perspectivas. É a possibilidade de se estudar em outro país e cultura, viver como quem busca inspirações direto da fonte. Por essa razão, como um país de vanguarda para assuntos políticos no continente Sul-Americana, foi junto a estudantes uruguaios que encontrei espaço para me aprofundar em assuntos políticos, feministas, de integração regional e de direito e gênero. E foi ao absorver tanto e conhecer tanto que tomei a coragem inédita de participar de um evento, como palestrante, na “V Jornadas de Debate Feminista de Montevideo”.

Assim, conto por fim dessa experiência pois ela foi o auge da cara e da coragem postas ao sol. Participar de um evento internacional e apresentar um texto pessoal e político em outro idioma a tantas outras mulheres interessadas no tema foi certamente o ponto mais alto da experiência. Falar sobre o contexto político ao qual a temática feminista se desenrola foi o que por fim, me permitiu também retornar com um projeto de pesquisa alinhado para a graduação.

Portanto, por moral da história, é preciso conhecer para ser conhecido, ou se expor para se fazer entender. É preciso ter coragem para sair de um intercâmbio e para voltar com a bagagem. Mas viver é justamente sobre seguir mudando perspectivas e para tanto, posso afirmar que não há desenvolvimento e satisfação maior do que colocar a cara no sol e, se possível, no estrangeiro!

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