Adaptar e readaptar: a experiência da mobilidade internacional na Coreia do Sul durante a pandemia da COVID-19
Thaisa da Silva VianaGraduanda em Relações Internacionais pela UFF.
Foi intercambista na Konkuk University (Coreia do Sul) em 2020.
Entrei na Universidade Federal Fluminense (UFF) já ciente da possibilidade da mobilidade internacional. Lembro de verificar as parcerias com outras universidades estrangeiras antes mesmo de ser aprovada no SISU, enquanto ainda me preocupava com o ENEM e demais vestibulares. Ver todas as opções e oportunidades de intercâmbio que a UFF oferecia me motivou tanto em escolhê-la como casa nos últimos 4 anos quanto a perseverar em meu objetivo da mobilidade internacional. Se antes o sonho de estudar na Coreia do Sul era algo tão distante e impossível para minha realidade, aos poucos, ele foi se mostrando como um objetivo cada vez mais real.
O sonho longínquo finalmente se concretizou depois da aprovação no edital para a mobilidade internacional no primeiro semestre de 2020, e, apesar da insegurança financeira e pessoal, me sentia disposta a encarar a jornada.
Fui selecionada para estudar na Konkuk University, em Seul, uma das universidades mais conhecidas da Coreia do Sul. Cheguei no país no dia 20 de fevereiro de 2020, após uma viagem de aproximadamente 30 horas de voo, ainda incrédula em tudo que estava acontecendo.
No entanto, ainda que tudo fosse a realização de um projeto por muito tempo planejado, talvez eu não estivesse pronta para todas as surpresas que surgiram durante o processo.
O ano de 2020 foi profundamente marcado pela pandemia de COVID-19 a qual afetou todas as nossas dinâmicas e vivências. Vivemos no “novo normal”, com restrições, adiamentos, cancelamentos, e a temida quarentena, que no Brasil foi prevista por apenas um mês, mas que se estendeu por quase um ano e ainda faz parte do cotidiano de milhões de pessoas ao redor do mundo[2]. Além de me adaptar ao novo ambiente, eu teria que me adaptar a uma nova realidade diferente até mesmo para a própria Coreia do Sul.
O país encarava a pandemia diferente dos demais países que passavam pela crise, muito por já enfrentá-la antes mesmo de ser categorizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e também por já ter uma experiência semelhante durante a crise da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), em 2015. Não havia tantas restrições, as aulas foram brevemente adiadas e os estabelecimentos continuavam abertos, sendo obrigatório apenas o distanciamento social em locais públicos e o uso obrigatório da máscara. Ainda assim, era uma situação preocupante para todos e existia um certo medo pela doença até então pouco conhecida.
Apesar de ter ido para a Coreia do Sul enquanto o Brasil apresentava um número de casos ainda longe de seu pico, pude notar diferenças interessantes dos efeitos da pandemia em ambos os países. Para além das políticas públicas e impactos como números de casos e óbitos, pude observar interessantes diferenças dos efeitos sociais da pandemia em cada país, sendo essa variação vinda principalmente devido o fator cultural de cada um. Cito como principal exemplo o próprio hábito de usar máscara. Enquanto no Brasil era algo novo e foi, até certo ponto, difícil de ser adotado, na Coreia do Sul é parte comum à própria cultura coreana — especialmente no inverno —, não sendo um item novo a ser integrado à rotina pós pandemia.
A pandemia ainda trouxe modificações quanto à forma de ensino. As aulas passaram a ser parte remotas e parte presenciais, com conteúdos transmitidos através de plataformas on-line. De início pensei que o novo modelo seria dificilmente incorporado, mas tudo foi rapidamente ajustado, muito por já ser comum às universidades coreanas terem parte do conteúdo em portais on-line. Acredito que estar em outro país, com uma didática tão diferente da que conhecia no Brasil, ajudou a encarar com mais facilidade esses novos tempos de aulas on-line quando voltei à UFF. Aprender a ter a mesma disciplina e consistência com os estudos on-line e presenciais na Konkuk fez com que transição das aulas presenciais para as aulas on-line fossem muito mais suaves para mim, e depois, pude até mesmo utilizar esse conhecimento e experiência para atuar como monitora no semestre seguinte à minha volta.
Outro ponto interessante de observar na comunidade acadêmica coreana foi a presença dos conhecidos clubes, reunindo alunos por algumas semanas para debater diversos assuntos — até mesmo sobre vida alienígena no clube chamado “alien club”, o qual fiz parte por um tempo. Mais do que uma tentativa de produção de conhecimento, era também uma forma de aproximar alunos, formar grupos de amigos e até mesmo dar um tempo de lazer para os alunos dentro da própria universidade, já que a vida acadêmica ocupa grande parte da vida de um estudante universitário — em especial na Coreia do Sul em que é mais comum morar nas moradias oferecidas dentro do próprio campus.
Acredito que esses grupos foram importantes para uma maior integração com outros alunos, especialmente fora do círculo de intercambistas. Apesar da barreira linguística, que por vezes nos coloca em situações até engraçadas, estar em um clube, mesmo que por pouco tempo e em condições tão adversas devido à pandemia, foi uma troca cultural extremamente valiosa e interessante. A possibilidade de poder utilizar a disciplina de língua coreana de forma prática, ajudar outros alunos com o inglês e, acima de tudo, fazer novos amigos, se tornaram mais uma prova da existência das universidades não apenas na produção de conhecimento, mas como espaço amplo e acolhedor para debate e enriquecimento de círculos sociais. Além disso, os clubes mostraram para mim a força do corpo discente em se mobilizar e trabalhar em conjunto, mesmo em coisas tão simples quanto a discussão de vida alienígena, e em tempos tão difíceis como foi durante a pandemia.
Sobre a questão do idioma, aliás, pessoalmente considero uma das partes mais interessantes e desafiadoras da mobilidade internacional, mas que para mim se tornou mais do que a aprendizagem de apenas um novo idioma. Confesso que poder me comunicar com duas senhoras perdidas em um mercado em Iksan com o pouco que aprendi nas aulas de coreano foi algo divertidíssimo, mas compreender aspectos culturais importantes através do idioma me marcou profundamente e em muito ajudou minha pesquisa.
Dou como exemplo duas situações que aprendi com o estudo da língua coreana durante o período da mobilidade que me auxiliaram em meu estudo e desenvolvimento acadêmico: o conceito de “한” e a contextualização na língua coreana.
“한”, romanizado como han, é uma palavra sem tradução apenas entendida como um conceito para emoções ligadas ao ressentimento e tristeza coletiva entre os coreanos. Essa simples palavra carrega consigo todos os elementos para se compreender as dificuldades históricas que o povo coreano passou ao longo dos anos, as quais contribuíram para a construção da Coreia como nação coletiva. O sentimento e a palavra surgem como uma resposta à dolorosa história da nação com anos de opressão, se tornando um elo de ligação entre todos os coreanos e fazendo parte da cultura coreana até hoje A identidade da sociedade coreana moderna pós-colonial perpassa esse conceito, e para estudar movimentos nacionais da península, o conceito de apenas uma Coreia e a reunificação — temas da minha pesquisa atual — é necessário compreender também esse sentimento. Somente estudando a língua coreana é possível compreender a dimensão do han, e compreender a dificuldade de uma tradução precisa.
Além disso, cito a contextualização da língua coreana como outro elemento que em muito contribuiu para minha formação. Assim como outras línguas asiáticas, o coreano é muito baseado em um contexto. Durante a formação das frases, oculta-se algumas informações durante a comunicação por acreditar já ser sabido no momento da fala, mesmo a informação nunca sendo mencionada antes.
Essa forma de elaborar frases torna o coreano extremamente difícil para falantes de outros idiomas, especialmente lusófonos, pouco acostumados com a forma de posicionar verbos para montar frases — que tem seus verbos colocados no final da frase — e por serem línguas mais descritivas e detalhistas. Observei dificuldades pessoais em sempre colocar informações demais em meus textos e respostas de trabalhos, sendo sempre avisada por meus professores na Konkuk de que muito já se sabia pelo próprio contexto da ocasião, e que eu precisava ser mais objetiva. Após estudar mais do coreano, observo que suas pontuações eram mais do que uma tentativa deles de impedir que eu fosse prolixa, sendo uma característica cultural dos coreanos em serem diretos e gostarem de respostas mais diretas. Essa característica percebi como sendo reflexo do próprio idioma que exige uma abordagem muito mais direta, sem muitos adjetivos e descrições. Esse aprendizado refletiu profundamente em minha pesquisa, aprendendo a ser mais objetiva tanto nas diretrizes de escolha de tema quanto na própria escrita.
Devo acrescentar ainda quanto a pesquisa que estar na Coreia do Sul me proporcionou um muito maior acesso a materiais e bibliografias disponíveis sobre as Relações Internacionais e a Ásia. Estar no país não só permitiu um acesso mais fácil a esses conteúdos —que antes no Brasil eram tão restritos—, mas como também me trouxe vivência sobre os assuntos o qual pesquisava. Além da pandemia, o país também passava pelas eleições parlamentares, com direito a carros de som, coreografias com jingles de campanha, comícios e manifestações. Muito pude observar sobre grupos e movimentos políticos presentes no país durante o período. Pude presenciar diversas manifestações dos grupos anti-Japão, anti-China, grupos nacionalistas, grupos pró-unificação e outros movimentos políticos que sempre estudei de longe. A experiência me permitiu obter fontes primárias com entrevistas e pesquisas de campo em várias manifestações que ocorreram enquanto estava no país, e essas, se tornaram fundamentais durante a elaboração de um artigo sobre nacionalismo coreano e futuramente meu trabalho de conclusão de curso relacionado ao tema.
Além de todo aprendizado dentro da Konkuk, também tive experiências fora da faculdade que me fizeram crescer pessoalmente e aprender mais sobre a Coreia do Sul, e diria até mesmo sobre o próprio Brasil. Em diversos passeios pelos cafés e bairros de Seoul, eu e outros intercambistas sempre observamos como a cidade parecia girar em torno das faculdades e da educação em geral. Pareciam que todos os bairros tinham seus estabelecimentos voltados para atender as faculdades — que eram muitas — por perto, como se a cidade tivesse em seu centro os centros acadêmicos.
Outro momento que sempre percebi esse fato era ao ver a comunidade residente ao redor da Konkuk todos os dias pela manhã, ou pela noite, passeando pelo grande lago bem no coração do campus. Era como se a faculdade fosse também um grande parque aberto para o lazer e o bem estar da população. Não apenas na Konkuk isso ocorria, mas todas as outras grandes universidades de Seul também eram abertas ao público 24 horas, sendo sempre muito presentes na comunidade ao redor.
Estudar na Konkuk University foi com certeza um divisor de águas, que me fez perceber o quanto a educação pode mudar uma nação e transformar realidades. O investimento maciço da Coreia do Sul nas universidades e na educação como um todo durante a década de 1980 valeu a pena, e isso é tangível no cotidiano do país atualmente.
A língua coreana atual sendo tão didática, com objetivo de expandir a alfabetização o mais rápido possível; a arte nas moedas, tendo como principais figuras nomes importantes da era mais marcante para a educação e ciência coreana; a valorização dos professores no país; além de toda resposta rápida e eficiente do governo coreano frente à pandemia, levando em consideração médicos, cientistas e especialistas para combater a crise, entre outros momentos, exemplificam um pouco dessa realidade focada na educação já tão característica da Coreia do Sul.
Em momentos de descrença nas instituições de ensino superior e na ciência no Brasil, viver em um local que não apenas os bairros de sua principal metrópole, mas, toda sociedade, gira em torno da educação, foi surpreendente. Diria até, acalentador, por trazer esperança de que esse presente coreano seja um futuro não tão distante para o Brasil.
Todo esse debate me despertou um olhar ainda mais profundo sobre o Brasil e suas instituições educacionais, compreendendo ainda mais sobre todo delicado trabalho das universidades brasileiras em existir e, acima de tudo, resistir.
As políticas de inclusão, por exemplo, amplamente criticadas nos últimos anos, foram uma das formas adotadas para ampliação da educação superior, e se tornaram políticas que mudam não apenas indicadores socioeconômicos e perfis raciais dentro da comunidade acadêmica, mas realidades, dando perspectivas de vida para jovens que jamais imaginavam um dia ter uma vida em que a educação se mostrava possível. A ampliação do acesso à educação superior, assim como foi feita na Coreia do Sul, já é incentivada pelas universidades brasileiras, e, é, de fato, capaz de transformar um país socialmente e politicamente. Além disso, ver toda integração da Konkuk com a comunidade local me lembrou todo esforço da UFF e o projeto UFF nas Ruas, com o incansável trabalho de integrar ainda mais a população nas universidades.
Pude observar também que a mesma luta das universidades brasileiras para a preservação da democracia e defesa da liberdade de expressão também está fortemente presente nas universidades coreanas. O Brasil e a Coreia do Sul compartilham o mesmo passado com ditaduras militares fortemente repressivas, e as universidades dos dois países se tornaram os principais focos de luta contra esses regimes opressores. Sempre é mencionado nos estudos sobre a história coreana a forte resistência das universidades na década de 1980 — em especial dos estudantes universitários de Gwangju durante o massacre em 1980 —, e enquanto frequentava a Konkuk, tanto os professores quanto os monumentos, textos e tudo no campus lembrava a luta da universidade durante a ditadura militar. Não pude deixar de lembrar da UFF e todo seu histórico de luta política, e pude perceber a semelhança entre ambas na resistência frente ao fascismo.
Digo que a Coreia do Sul me trouxe novos aprendizados. Aprendi a ter mais paciência para conviver com os outros — no caso principalmente devido à barreira linguística — aprendi também que apesar de todos os ventos contrários, é possível aproveitar e se deve fazer o melhor com o que se tem. Aprendi a me abrir mais com as pessoas, a ter mais coragem de enfrentar novos desafios, a ter esperança de que apesar dos crescentes problemas, com calma, tudo teria uma solução — mesmo que esse problema envolva a suspensão de linhas aéreas para o Brasil e você fique preso na Coreia do Sul sem previsão de volta. E digo ainda que aprendi também a fazer um maravilhoso 칼국수[3] e o famoso 비빔밥[4] de Jeonju. Além do aprendizado, digo que a Coreia do Sul também me deu algumas certezas a mais.
Voltei da Konkuk University com a certeza de seguir a carreira acadêmica e o magistério como futuro profissional, por uma vocação que redescobri enquanto estava no país. Formei certezas sobre o papel das universidades e da educação em uma sociedade, após perceber e viver intensamente sob seu papel transformador.
Espero um dia voltar ao país que tanto me ensinou e não poderia terminar esse texto sem agradecer imensamente à UFF e à Superintendência de Relações Internacionais (SRI). Agradeço pela oportunidade, e acima de tudo, por todo suporte oferecido. Meu período de mobilidade internacional não poderia ter sido mais caótico e único, e mesmo em momentos tão difíceis, era tocante todo o esforço e mobilização feito pela UFF para que tivéssemos todo suporte necessário.
Viva a ciência e as universidades, de Gwangju a Seul, ou de Niterói à minha saudosa cidade Tefé.
Notas
[1] “Poder brando” em livre tradução. Termo utilizado nas Relações Internacionais para descrever a habilidade de um Estado em influenciar interesses e comportamentos de terceiros, geralmente relacionados à exportação cultural e ideológica de um país.
[2] Texto escrito em dezembro de 2020, enquanto ainda não existia vacina e a quarentena e outras medidas restritivas continuavam em diversos países.
[3] Macarrão coreano cortado na faca, em tradução livre.
[4] Arroz com vegetais, carne e molho de sésamo, em tradução livre. Um dos pratos mais populares da Coreia.