Entre a chegada e a saída

Rodrigo Fraletti Natal
Graduando em Psicologia pela UFF.
Foi intercambista na Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique) em 2018.

Introdução

Para falar sobre meu encontro com Moçambique, preciso retornar um pouco e iniciar pelos motivos que me fizeram escolher esse país como destino. Saindo de Campinas/SP, me mudei para Rio das Ostras/RJ para cursar Psicologia na UFF. Entrar na universidade é sempre um processo de encontrar vários mundos, ampliar horizontes e encontrar oportunidades que só poderiam ser proporcionadas dentro desse espaço.

Durante meu processo de formação, participei do Programa de Educação Patrimonial em Oriximiná, coordenado pela professora Adriana Russi e o professor Johnny Alvarez, onde na época estava sendo implementado uma formação lato sensu em etnoeducação aos professores da rede de ensino da cidade. Em 2016 fui para Oriximiná/PA para a expedição de campo deste projeto, onde nós (estudantes) ficamos 20 dias na cidade para mediar a relação entre os professores da UFF e os professores participantes da formação.

Começo falando sobre esse projeto, porque estar em Oriximiná foi um primeiro passo para emergir meu desejo em conhecer outros locais, para encontrar diferenças e me relacionar com a alteridade. Oriximiná, sendo uma das maiores cidades em território do Brasil, concentra uma grande pluralidade de povos e culturas, tendo uma grande concentração de comunidades ribeirinhas, quilombolas e aldeias indígenas, sendo possível encontrar toda essa pluralidade no centro urbano da cidade.

Com a mediação do professor João Felipe Lobato da Cruz, participante da formação, tive o privilégio de passar um fim de semana no quilombo do Jauari, podendo vivenciar e conhecer aquele espaço e pessoas, bem como o Daniel Souza, liderança do quilombo.

Depois dessa experiência, também busquei estar presente em várias festas de quilombos do estado do Rio de Janeiro, como as festas do quilombo de São José da Serra em Valença/RJ e o quilombo da Machadinha em Quissamã/RJ.

Essas experiências foram transformadoras na minha vida. Proporcionaram conhecer organizações sociais e culturas diferentes, ampliando meus horizontes de percepção e enriquecendo o olhar para o mundo, assim como minha relação com a academia.

Por essas experiências que a universidade me proporcionou, me inscrevi no programa de mobilidade internacional com o desejo de estudar em Moçambique. Desejo ser movido por momentos que me aproximaram da realidade plural do Brasil, mas principalmente de realidades não hegemônicas. Comunidades e povos que vivem sendo resistência a uma lógica euroamericana, através de uma forma de vida diferente da hegemônica branca.

Moçambique, para mim, apareceu como o país que poderia oferecer esse tipo de experiência. Levando em conta a barreira que eu tinha em relação a outras línguas, minhas opções estavam limitadas entre Moçambique e Portugal, sendo a segunda de pouco interesse, já que estava buscando diferenças e Portugal já se faz muito mais presente no nosso processo de formação em geral. Acredito que depois desses exemplos, ficou óbvio o motivo da minha escolha não ser Portugal. Como brasileiro branco, não tenho interesse em buscar semelhanças, mas algo que proporcione o encontro com uma alteridade menos ocidental.

Encontro com Moçambique

Cheguei em Maputo, capital de Moçambique, no dia 26 de julho de 2018, depois de algumas horas de viagem e escala na África do Sul. Estive vinculado à Universidade Pedagógica de Maputo, pelo curso de Psicologia. Durante os cinco meses e alguns dias que estive no país, morei na residência universitária, mas como fecham para o fim do ano, passei meus últimos 20 dias na casa do Horácio Morgado, moçambicano que me acolheu e a outro brasileiro, Rhuann Fernandes, de braços abertos.

Meu encontro com Moçambique foi mediado por pessoas que para sempre carregarei comigo, e não tem como eu falar dessa experiência sem citar algumas delas. Abel Henriques Elias Manhique, de 21 anos, é estudante do curso de Assistência Social da Universidade Pedagógica, e foi responsável por me mostrar Moçambique real, como ele mesmo dizia.

Abel e sua família me receberam em casa, na Zona Verde, periferia da capital. Neste local vivenciei o dia a dia das pessoas. Aprendi a fazer Badjia, bolinhos de feijão frito com a Tia Ester. Frequentei a Igreja Católica de São Francisco de Assis e pude me encantar com a musicalidade encontrada nas missas sempre acompanhadas de coral e batuque.

Passei por momentos inesquecíveis, principalmente por encontrar um companheiro disposto a me apresentar a sua realidade. Cheguei a ir até ao enterro de um homem da comunidade, e após isso, participar da confraternização que existe após o ritual na casa da viúva.

Com ele, viajei para o interior da província de Gaza, onde conheci seus avôs maternos, e pude estar presente na festa de casamento de parentes da família. Na região, a língua mais falada é a Chope e em vários momentos as pessoas não falavam português. Além disso, Gaza é uma província muito importante para a história de Moçambique, onde viveu o último Rei de Gaza e líder do império Gungunhana, reconhecido pela luta e resistência à colonização portuguesa. Se tornando símbolo dessa luta depois da revolução e conquista da independência do país pela Frente de Libertação Nacional de Moçambique (FRELIMO) (WERMELINGER, 2019).

Outro dos vários encontros importantes, foi Ângelo Daniel Chumane. Filósofo formado pela UP e Curandeiro com seus 33 anos. Conheci ele em uma barraca – lanchonete – em frente à universidade, e foi meu principal interlocutor sobre a espiritualidade moçambicana. Trocamos histórias e conversas que misturavam a espiritualidade afro-brasileira com a moçambicana e com um pouco de filosofia.

Depois desse primeiro encontro, tivemos outros, sempre de sexta-feira em sua casa. Em um específico, Ângelo jogou seus búzios para mim, e seu jogo, diferente dos encontrados no Brasil, não era apenas com os búzios, mas tinha outras conchas, pedras e até um pequeno osso de leão. Em outro, me explicou sobre os espíritos, e a relação de cada um com as etnias existentes no país: como os Changanas – localizados na região de Maputo – e a relação desse grupo com o espírito do leão. Diziam que alguns conseguiam colocar as mãos dentro da boca do animal sem nenhum problema.

Disse que era mais próximo do espírito da Hiena, sempre nomeados primeiro em changana, e depois em português. Também passei por um processo chamado Bafo: sentei em frente de uma bacia onde ele raspava raízes e outras coisas, depois de completar com água fervente, pediu para eu colocar a cabeça por cima da bacia e pedir o que eu desejasse, nisso jogou uma toalha branca em cima de mim. Fiquei dentro desse Bafo por alguns minutos, sentindo o vapor quente por todo o corpo. Depois, com a água já fria, tomei banho com essa mesma mistura.

Entrar em contato com outras manifestações espirituais, também foi um ponto que pesou na minha decisão por conhecer Moçambique, e além dessas experiências com a igreja católica, e o curandeirismo, também pude vivenciar uma missa na igreja Zion, caracterizada pelo seu sincretismo entre protestantismo e culto aos ancestrais, e até presenciar um culto hindu, ao ser convidado por uma moça indiana, que me foge o nome, proprietária de uma lanchonete dentro da universidade. De acordo com ela, Moçambique tem uma das maiores comunidades hindu fora da Índia, e foi morar no país por ter seu casamento arranjado pela família com um moçambicano.

Passei por algumas histórias e alguns lugares por onde estive durante a mobilidade, mas poderia ter escolhido histórias completamente diferentes para essa mesma exposição. A riqueza e profundidade das experiências que vivi, e pessoas que conheci, não poderiam ser contempladas nesse trabalho, mas meu objetivo nesse tópico é mostrar o que as outras pessoas podem esperar ao realizar essa viagem: uma avalanche de alteridade e encontros.

A Academia e o contexto

Acredito que quando chegamos em um lugar novo, sempre trazemos coisas estruturadas a partir da nossa história, cultura e posição social de onde viemos. Criamos e projetamos ideias sobre o que podemos encontrar. Além disso, interpretamos nossas primeiras im- pressões através desse material que carregamos.

Na academia, me inscrevi em quatro disciplinas: Antropologia Cultural de Moçambique, História Cultural e Religiosa de Moçambique, Etnopsicologia e uma disciplina intitulada Tema Transversal em Gênero.

Em um primeiro momento, me incomodei com algumas coisas da academia e, comparando com a experiência acadêmica da UFF, cheguei a interpretá-la como muito positivista e me sentindo pouco interessado por ela. Confesso que hoje, olhando para a forma que pensei naquele momento, vejo os problemas dessa interpretação precipitada, e fui tomando consciência disso quando comecei a conhecer a história do país.

Moçambique conquistou a independência através da revolução organizada pela FRELIMO em 1975 (MOÇAMBIQUE, s.d.), e após isso o país viveu anos de conflito entre a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO). Teve sua primeira academia fundada em 1968 com o nome de Universidade de Lourenço-Marques, e com a independência foi renomeada para Universidade Eduardo Mondlane em 1976 (UEM).

Cito esses fatores porque fui tomar consciência deles, além do fato de Moçambique se encontrar com o nono pior índice de desenvolvimento humano (AGÊNCIA LUSA, 2020), que consegui identificar o porquê o meu posicionamento sobre a academia estava equivocado. Pois não levar em conta esses fatores, é o mesmo que justifica discursos evolucionistas e racistas sobre países colonizados e africanos. Também, por perceber que outras pessoas em intercâmbio, tiveram um encontro totalmente diferente do meu com a academia moçambicana, e colheram vários frutos dessa relação.

Como podem ver pelos nomes das disciplinas que cursei, não me restringi a pegar disciplinas apenas de Psicologia, pegando disciplinas dos cursos de Antropologia e História. Isso também vem pela forma que venho construindo meu olhar para Psicologia: como um saber que necessita de uma implicação política e que não tem como atuar sem estar inserida no território. Nesse sentido, achei mais interessante para meu processo de formação, entrar em contato com o território, seja pelas disciplinas em Antropologia e História ou na própria vivência desse território, buscando estar nos espaços e conhecer as pessoas.

Em História Cultural e Religiosa de Moçambique, entrei em contato com os diferentes momentos da relação estado e igreja na época da colônia. Em Antropologia Cultural, e Etnopsicologia, nas diferenças étnicas e territoriais que existem no mesmo. Diferenças essas que fazem a tradição de uma etnia ser vista como completamente estranha e esquisita para outra etnia, e a universidade era esse local de congregação de pessoas de locais, culturas e países diferentes.

Contribuições para a formação acadêmica e pessoal

Uma das contribuições mais importantes da mobilidade foi entrar em contato com uma realidade africana. O Brasil, em todo seu processo histórico e político, reduziu a história da África a história da escravização e diáspora, focando sempre nos navios que saíram de alguns países e chegaram ao Brasil, ou seja, sempre na perspectiva do colonizador.

Essa política só começa a se modificar com a Lei no 10.639, de 2003, de obrigatoriedade do ensino da história da África nas escolas. Então, foi em Moçambique meu primeiro encontro com a história de um país africano, com um processo de colonização portuguesa fora do Brasil, com uma forma de organização familiar não ocidental, e muitas outras diferenças. Ou seja, foi em Moçambique que eu entrei em contato com uma cosmovisão diferente da branca euroamericana.

Esse contato me afeta trazendo questionamentos e a necessidade de pensar coisas, e hoje caminho para realizar a monografia de conclusão de curso como uma forma de devolutiva ao país, assim como uma forma de sintetizar e elaborar os questionamentos que me surgem. Nesse momento, venho elaborando esse projeto, e como ainda pouco desenvolvido, não me sinto seguro de trazê-lo aqui.

Mas, percebo que esse movimento e a necessidade de pensar a experiência de mobilidade aparecem em vários intercambistas. Como a Vitória Marinho Wermelinger, graduada em licenciatura em Ciências Sociais pela UFF de Campos dos Goytacazes que foi pelo mesmo edital que eu, e produziu o artigo citado anteriormente de título Gungunhana: A construção de um herói moçambicano.

Comentei sobre algumas diferenças encontradas em Moçambique, outra, foi conhecer o casamento tradicional, conhecido como lobolo, mais especificamente o lobolo do Sul de Moçambique. Essa prática consiste em dar presentes à família da noiva, e busca a harmonia social das famílias (FERNANDES, 2020). Sinteticamente, ele é dividido em três partes, e eu cheguei a presenciar a primeira, chamada hicombela mati (pedir água), onde se estabelece os primeiros laços entre a família do noivo e a família da noiva (FERNANDES, 2018).

Sobre esse assunto, preciso também citar Rhuann Fernandes, que também estava nesse período em mobilidade. Na época graduando de ciência social pela UERJ, ao entrar em contato com o lobolo, muda todo seu projeto de monografia e decide pesquisar o mesmo. Após defender seu trabalho, de profunda sensibilidade científica, transforma-o em livro, de título Casamento Tradicional Bantu: O Lobolo no Sul de Moçambique (2020), sendo o primeiro sobre o tema publicado por um brasileiro.

Trouxe esses trabalhos, que foram impulsionados por essa experiência, trazendo-os como exemplos de publicações que podem sair dela. Trabalhos estes que atuam politicamente para trazer a voz de diferentes formas de existências para nossa academia e fortalecendo a implementação da Lei nº 10.639, tão importante para a ampliação e reparação da história do Brasil. Moçambique é um mundo diferente e ao mesmo tempo semelhante, conhecê-lo é um presente repleto de encontros que hoje carrego na minha história.

Além dessas produções, outra estudante brasileira que estava com a gente é Larissa Santos, na época estudante de Letras da UFF e hoje graduada, e participante do Clube do Livro, grupo de pessoas unidas pela vontade de fazer ler e disseminar a leitura por Moçambique.

Conclusão

Cheguei em Moçambique com a expectativa de me surpreender, de encontrar um mundo nunca vivido. Voltei com essa expectativa realizada, mas para além disso, apaixonado pelo país e pelas pessoas que passaram pelo meu caminho. Desde minha volta, busco incentivar outros estudantes a se interessarem por Moçambique e olharem para esse país como um destino para a mobilidade internacional.

Durante esse trabalho, citei alguns brasileiros que me acompanharam, mas também preciso trazer outros que marcam esse processo, como Katia Leonor Alves e Amanda Fiuza que marcaram alguns dos encontros no terraço da UP, assim como Iris Pimentel, minha companheira da Psicologia na UFF Rio das Ostras que estava na UEM, mas uma companheira de antes da mobilidade.

Eu só tenho que agradecer esses momentos às pessoas que me acolheram e me ensinaram por lá. E sigo minha vida habitado por essas lembranças e buscando trazê-las para meu processo de formação acadêmica, como forma de elaboração e retribuição a tudo que vivi.

Em Moçambique, tem um ditado que sempre vem à cabeça, e marca minha viagem: A ku lela ku venga vuyani (RIBEIRO, 1989). Traduzindo-o, significa: a despedida causa visitas, e é sempre despedindo, visitando e revisitando que cheguei, estive e parti de Moçambique, e assim, essa experiência continua a reverberar de várias formas em mim.

Referências

AGÊNCIA LUSA. Moçambique é o nono pior no índice de desenvolvimento humano. Observador, 15 dez. 2020. Disponível em: https://observador.pt/2020/12/15/mocambique-e-o-nono-pior-no-indice-de-desenvolvimento-humano/ Acesso em: 02 fev. 2021

FERNANDES, Rhuann. Lobolo: celebração litúrgica e tradicional no Sul de Moçambique. Revista Campos de Curitiba, v. 19, n. 2, p. 124-134, 2018.

FERNANDES, Rhuann. Casamento tradicional Bantu: o Lobolo no Sul de Moçambique. Rio de Janeiro: Multifoco, 2020.

MOÇAMBIQUE. A luta pela independência. Portal do Governo do Moçambique, S.d. Disponível em: https://www.portaldogoverno.gov.mz/index.php/por/ Mocambique/Historia-de-Mocambique/A-Luta-pela-Independencia. Acesso em: 02 fev. 2021.

RIBEIRO, Armando, Padre. 601 provérbios changanas. 2. ed. Lisboa: Silvas – C.T.G., 1989.

UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE – UEM. Nota histórica. Universidade Eduardo Mondlane, s.d. Disponível em: https://www.uem.mz/index.php/sobre-a-uem/historial. Acesso em: 02 fev. 2021.

WERMELINGER, Vitória M. Gungunhana: a construção de um herói moçambicano. Revista Discente Planície Científica de Campos de Goytacazes, v. 1, n. 1, p. 1-9, 2019.

Skip to content