Intercâmbio no Chile: experiências, desafios e recordações de mobilidade internacional para um país latino-americano
Marcele Gualberto GomesGraduanda em Arquitetura e Urbanismo pela UFF.
Foi intercambista na Universidad Católica del Norte (Chile) em 2019.
No presente artigo, busco relatar a minha experiência como aluna de Arquitetura e Urbanismo intercambista numa universidade no Norte do Chile, no ano de 2019. Começo o texto destacando que, ao entrar na universidade pública como aluna de ações afirmativas e vinda de escola pública, tomei ciência das inúmeras oportunidades (apesar dos cortes feitos à educação no nosso país devido a uma crescente falta de valorização da ciência) de aprender idiomas e até mesmo viajar ao exterior para aprimorar meus estudos. Desse modo, em meu 2º período da graduação, me inscrevi e fui selecionada para o Programa de Universalização em Línguas Estrangeiras (PULE), em que comecei a aprender a língua espanhola.
A partir disso, passei a adquirir conhecimentos que considero terem aberto a minha visão em relação à América Latina, pois além do ensino gramatical, comecei também a entender melhor a cultura e lutas do povo latino, graças também à forma excepcional de ensino dos professores do programa. No início do curso, meu interesse foi fundamentalmente pelo aprendizado de mais uma língua estrangeira e, ao final, posso afirmar que passei a valorizar mais a cultura do meu país e seus vizinhos, além de ter me gerado grande interesse por uma futura especialização.
Minha participação no PULE foi decisiva para que eu tivesse como minhas opções nos editais de mobilidade países latinos, o que em minha concepção é extremamente importante para modificar antigas visões coloniais de que o centro do conhecimento é a Europa, em detrimento de países da própria América Latina, além de valorizar os estudos e práticas produzidos aqui. Acredito que a experiência do intercâmbio num país do mesmo continente foi tão enriquecedora quanto às viagens para países europeus, uma vez que estive em contato com diferentes paisagens, povos, tradições e inclusive vivenciei momentos históricos.
Recepção dos alunos intercambistas na Universidade Católica do Norte
Concomitantemente ao meu aprendizado, me mantive atenta à abertura de editais da universidade e, em minha quarta tentativa, fui contemplada pela bolsa de estudos do Programa Santander Ibero-Americanas. Optei por cursar um semestre na Universidade Católica do Norte (UCN), instituição chilena localizada na região de Antofagasta.
Coincidentemente minha viagem ocorreu em 2019.2, logo após minha conclusão do curso no PULE, em 2019.1, o que
foi uma oportunidade perfeita para colocar em prática os conhecimentos adquiridos. Hoje, me sinto fluente e confiante com o idioma, após ter passado 5 meses imersa e em contato com falantes de diversas partes do mundo, uma vez que na UCN havia outros estudantes intercambistas de várias partes da América Latina, como México e Peru, assim como estudantes da Espanha.
A viagem representou, para mim, além de um grande aprendizado acadêmico, uma experiência singular na minha vida pessoal. Foi a minha primeira viagem internacional, minha primeira vez viajando de avião e conhecendo um lugar completamente diferente ao que eu estava habituada, como moradora de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O Norte do país é extremamente árido e a escala das cidades muito menor comparada aos grandes centros urbanos brasileiros, logo, me habituar ao espaço e à cultura foi um exercício de resiliência, principalmente por estar distante do meu círculo pessoal, ainda que eu tivesse a companhia de dois amigos brasileiros, também aprovados para a mobilidade internacional da UFF, e também os amigos feitos na universidade.
Durante o meu período letivo, estive morando em uma pen- são, dividindo um quarto com outra amiga brasileira numa casa com aproximadamente 20 moradores no total. Essa experiência, ainda que com momentos estressantes por conta da divisão do espaço com tantas pessoas diferentes, foi maravilhosa pelas amizades que fiz, principalmente com uma família venezuelana, com quem mantenho contato até hoje. Ali também vi de perto o que já é bastante falado: a hospitalidade que o povo latino compartilha como característica.
Uma das atividades, além dos estudos que desenvolvi para complementação dos gastos mensais, foi a venda de brigadeiros e bolinhos de chuva a colegas da universidade e na vizinhança em que morei. Em paralelo, esporadicamente, também realizava passeios de uma hora com cães. Esses pequenos trabalhos esporádicos foram de grande valia, especialmente para realizar passeios turísticos e viagens ao fim da mobilidade internacional. Ademais, foram experiências de trabalho interessantes e enriquecedoras, em que pude apresentar um pouco da culinária brasileira aos estrangeiros, que em sua maioria eram bastante receptivos, e também me divertir com os bichinhos durante as caminhadas.
Além do contexto ambiental e externo, também senti as distinções do meio universitário. O modo de ensinar arquitetura e urbanismo com outra escala de estudos, outras maneiras de avaliação e valorização de conhecimento. Tive contato com o aprendizado sobre as culturas andinas e a produção de arquitetos latinos, temas que infelizmente pouco aparecem no ensino brasileiro.
Na disciplina de projeto, fundamental no curso de Arquitetura, participei de uma viagem de uma semana a São Pedro do Atacama juntamente com a minha turma, outra cidade de grande importância, especialmente turística, para o país, onde além da análise do lugar e propostas de intervenção realizadas no âmbito acadêmico, pude também desfrutar da beleza da região. Na primeira noite de viagem, acampei num vilarejo chamado Peine, sem eletricidade, um dos momentos mais especiais da mobilidade para mim pela beleza do lugar (com um dos céus mais limpos do mundo) e uma ocasião de troca entre os colegas que ali estavam.
Passeio em São Pedro do Atacama, na foto o
ponto conhecido como “Estrada Infinita”.
O projeto que desenvolvi posteriormente foi de grande valia, para mim profissionalmente, em razão do contexto singular em que trabalhei. A escala urbana era muito menor em relação ao que estou acostumada na minha graduação da UFF e o grande objetivo da intervenção arquitetônica se dava no resgate da cultura e valorização da ambiência andina, através de um povoado artesão existente numa área tomada por turistas (pois logo ao lado há um pequeno edifício para o terminal de ônibus da cidade), e com problemas de conexão das partes com o todo, gerando vazios urbanos como praças mal utilizadas e falta de ambientes confortáveis para a população desfrutar do espaço público. Foi um exercício importante pensar esse espaço com raízes históricas e com o papel de reforçar a identidade da população local, sem deixar de lado os visitantes de várias partes do mundo que viajam para São Pedro todos os dias.
Destaco aqui um momento singular da história chilena: o início das manifestações contra anos de políticas geradoras de desigualdades sociais no país. A partir de outubro (logo após minha viagem a São Pedro do Atacama) e até o fim da minha mobilidade, em janeiro, pude acompanhar de perto o levante popular ocorrido, com manifestações de norte a sul pedindo uma nova Constituição que efetivamente contemplasse os direitos da população. Devido aos protestos, minha universidade passou um período em greve, além de Antofagasta enfrentar dias com toque de recolher; no entanto, acredito que mesmo com algumas perdas devido às aulas adaptadas para intercambistas, ser testemunha de um momento tão importante e aprender mais acerca da história de um país que me gerou tantos laços foi um privilégio.
Lhamas na cidade de Iquique, Chile.
Um dos aspectos mais marcantes da minha mobilidade, sem dúvida, foi ter podido fazer viagens pela América do Sul. Em meu segundo mês de viagem, conheci a cidade chilena de Iquique durante o feriado das festas pátrias, em que há diversas celebrações por todo o Chile, com comidas, danças e celebrações típicas. Na cidade, visitei praias, vi lhamas pela primeira vez, alguns edifícios turísticos e também a obra Quinta Monroy, do arquiteto Alejandro Aravena, ganhador do Prêmio Pritzker (principal prêmio internacional para arquitetos), no ano de 2016.
Por estar no Norte do Chile, próxima às fronteiras da Bolívia e do Peru, ao final das aulas da universidade, realizei uma pequena rota que incluiu os dois outros países. Conheci as cidades de Uyuni, La Paz, Cuzco e Arequipa, que são muito interessantes do ponto de vista urbanístico, com lindos pontos turísticos como o Salar de Uyuni, o maior deserto de sal do mundo, Machu Picchu, e a Montanha de 7 Cores, que são lugares importantes para a humanidade e famosos locais de visitação. Neste percurso tive a experiência de conhecer lugares com climas, altitudes, dinâmicas sociais, espaciais e histórias muito distintas, aprendendo um pouco mais sobre cada cidade e cada país. Durante as viagens, vi paisagens deslumbrantes e conheci pessoas de diversos lugares, inclusive do próprio Brasil, além de participar de passeios culturais, o que me fez voltar com uma bagagem cultural enorme e lembranças pelo resto da vida.
Com o fim das visitas turísticas, retornei ao Chile, ainda com um mês até a volta ao Brasil. Assim, junto com minha amiga também aluna da UFF em mobilidade, comecei a fazer trabalho voluntário num hostel na cidade chilena de Valparaíso, na região metropolitana do país, onde a hospedagem era trocada por algumas horas de trabalho semanal cuidando do funcionamento do local. Apesar de um mês parecer pouco tempo, posso dizer que aprendi tanto quanto nos outros meses durante essa experiência. O trabalho me proporcionou conhecer pessoas de todos os lugares do mundo, aprender a administrar e comandar um
Bandeiras de diferentes países no Salar de Uyuni, Bolívia.
Além disso, conheci uma cidade extremamente bela, considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco por sua história e característica portuária fundamentais ao desenvolvimento do país, assim como a boemia e uma arquitetura única, com influência de diversos países europeus. Valparaíso, com uma geografia caracterizada por morros, tem ruas cheias de cores e grafites estampados nas paredes que além de trazerem beleza à cidade, contam também a história de lutas dos cidadãos portenhos.
No último semestre remoto de 2020.1, inclusive tive a oportunidade de apresentar um trabalho acerca da minha vivência na cidade, enquanto cursei a disciplina de Viagem de Estudos 2 que, por conta da pandemia de Covid-19, adaptou seu formato e diversas exposições sobre cidades ao redor do mundo foram feitas pelos alunos, seguidas de debates sobre as dinâmicas existentes em cada ambiente urbano. Em minha apresentação destaquei minha visão como estudante de Arquitetura, analisando o contexto e características da cidade, além de aspectos subjetivos da minha viagem.
Após o meu retorno, acredito que além da experiência marcante e que certamente mudou a minha vida, portas no mundo profissional também se abriram. O intercâmbio é um ponto de destaque na busca pela colocação no mercado de trabalho, sempre sendo mencionado em entrevistas de emprego, além da minha fluência no espanhol, o que normalmente não é tão comum no Brasil, apesar de nossa proximidade com tantos países que falam o idioma. Conhecer outra cultura e modo de pensar a arquitetura e o urbanismo também são pontos extremamente positivos a longo prazo, ampliando as minhas formas de atuação e escolha de outros lugares para trabalho.
Entendo também que os estudos sempre farão parte da minha vida, pois acredito plenamente que não há conhecimento estático, sempre é possível aprimorar-se e atualizar suas formas de exercer a profissão, com adaptações necessárias que ocorrem ao longo do tempo. Logo, em 2020.1 busquei mais uma vez uma oportunidade para aprender outro idioma e expandir minhas habilidades me inscrevendo novamente no PULE, dessa vez para uma turma de francês. Hoje já evoluí bastante na minha desenvoltura com a língua, graças mais uma vez a um método de ensino que valoriza a conversação e traz temas atuais da cultura e país em questão.
Encerro meu relato expressando minha gratidão e reconhecimento pelo papel da universidade pública, gratuita e socialmente referenciada, que mesmo com diversas dificuldades, forma não só profissionais competentes, mas cidadãos melhores. A mobilidade internacional é uma oportunidade única na vida dos poucos estudantes que conseguem ter acesso a bolsas de estudo e é nosso papel reafirmar sua importância e potencialidade. Espero que num futuro próximo os números de alunos com acesso à universidade pública cresçam mais e mais, assim como os recursos que permitam que outros estudantes tenham a possibilidade de estudar no exterior. O conhecimento adquirido vai além da técnica acadêmica e abre caminhos que ultrapassam fronteiras, expressando a resistência e potencial do ensino brasileiro.