Minha vivência em Moçambique: atravessei o oceano e fui atravessada por ele
Lourhanse LehdermannGraduanda em Psicologia pela UFF.
Foi intercambista na Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique) em 2019.
Dado esse pequeno contexto, posso dizer que a mobilidade internacional foi a experiência mais incrível da minha vida até agora. Atravessei um oceano e fui atravessada por outro. Atravessada pelos afetos, pelas trocas e pelas conexões, tudo isso em várias dimensões. Acredito que a experiência mais doida e mais intensa de se sentir um sujeito no/do mundo é a afetiva. E, muitas vezes, é complicado verbalizar tudo isso, pois essa dimensão afetiva se mistura com tantas outras coisas. Mistura-se com a experiência geográfica, com a corporal, com a cultural. E muitas vezes isso não está no campo da palavra. Está no plano do sensível, do sentir no âmago e elaborar no próprio corpo. Mesmo sendo difícil colocar todo esse afeto em palavras, gostaria de compartilhar essa história com você. Mais do que isso: gostaria de convidá-lo para fazer um exercício de imersão cultural e mergulhar nesse oceano comigo.
Em 2019, tomei a decisão de me mover. E ser contemplada pela bolsa de mobilidade foi crucial para esse movimento. Um corpo da América Latina que se moveu para a África. E os moçambicanos gostam de saber que um corpo das Américas decidiu se mover para a África. No início, ficaram desacreditados: “tu não escolheste Portugal?”, e quando respondi que não, que a minha escolha foi Moçambique, eles ficaram felizes. E aproveitaram para checar: “tu não achas que aqui só tem selvagem, né?”. Uma pergunta que me causa vergonha. Vergonha de fazer parte de um contexto no qual reina uma concepção ocidentalizada de que a África só tem pobreza e elefante
andando na rua. De fato, tem elefantes (aliás, foi uma das coisas mais lindas que vi na vida), mas eles ficam na reserva, não andando na rua. Também tem muita pobreza. Moçambique, por exemplo, está entre os países mais pobres do mundo. E é importante falarmos dessa pobreza, desde que ela não venha descolada da realidade que a compreende. Nessa experiência de me mover, ouvi histórias que não aprendi nos livros da escola e nem da faculdade, mas que se faziam presentes pela cidade.
A própria pobreza tem um contexto histórico envolvido pela colonização, pela Guerra de Independência e por uma Guerra Civil que durou mais de 10 anos, na qual as pessoas mal tinham o que comer. Carne lá é sinônimo de status. E você pode dizer que aqui no Brasil também é. E eu concordo, só que é um contexto diferente. Uma guerra de independência seguida por uma guerra civil não é nada fácil. Na época em que estive lá, o salário mínimo era em torno de 4500 meticais (hoje equivalentes a um pouco mais de 300 reais). Imagina comprar uma peça de carne bovina que custa mais de 1000 meticais (eu mesma ficava perplexa quando via esse valor no supermercado). E quando eu digo que não podemos falar dessa pobreza descolada de um contexto histórico é devido a importância de entender os efeitos da colonização. Aliás, ouvi muito sobre as histórias da colonização e da guerra. Histórias que não aprendi nos livros da escola, mas que se fizeram presentes durante toda a minha mobilidade. E, logo nos meus primeiros dias no país, fizeram questão de me contextualizar a respeito da história da independência. A guerra teve início em 25 de setembro de 1964 e o cessar-fogo ocorreu em 08 de setembro de 1974.
Contudo, a independência só foi proclamada no ano seguinte, em 25 de junho de 1975, por Samora Machel, líder da revolução e primeiro presidente pós-independência. Pela cidade, é possível encontrar algumas estátuas do Samora. Parar para admirá-las é ter essas datas contadas pelos próprios habitantes. Aliás, o aniversário de independência é uma data muito curiosa, pois ela também faz referência a data de criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), partido criado em 25 de junho de 1962 e que está no poder desde a proclamação da independência. Em 2019, ocorreram as eleições presidenciais e, novamente, um candidato da FRELIMO foi eleito.
Logo que o português saiu dessa terra, levou também seus recursos, e esse contexto de pobreza foi intensificado pela Guerra Civil, no qual as pessoas chegavam até mesmo a cruzar as fronteiras na tentativa de trocar sal por açúcar. E aproveito este momento para fazer um parêntese e indicar um filme chamado “Comboio de Sal e Açúcar”, meu primeiro contato com o cinema moçambicano. O filme tem como plano de fundo esse cenário da guerra. Em Moçambique, muita coisa do Brasil é consumida, mas aqui não sabemos quase nada sobre lá. Posso apostar que você não sabia do que estou falando aqui. Eu mesma não tinha conhecimento, afinal, nossos livros de História não dedicam páginas para essa história. E eu aprendi tudo isso pela grande experiência geográfica e cultural das ruas da cidade de Maputo.
Também ouvi histórias para as quais a grande mídia brasileira não destinou tanto espaço. Em março de 2019, um mês após a minha chegada, o ciclone Idai devastou a cidade de Beira, capital da província de Sofala. Beira localiza-se no centro do país e eu estava no extremo sul. Mesmo com a distância, foi uma comoção nacional. Na universidade, caixas e caixas arrecadando mantimentos para ajudar o povo de lá. Eu era um corpo estranho naquele lugar, não só pelo fato de ser uma mulher branca em um país majoritariamente negro como também por ser um corpo de São Paulo, a conhecida selva de pedra, e de Volta Redonda, a cidade do aço. Cidades marcadas pela poluição e pelas enchentes. E claro que essas coisas devastam uma cidade. A minha intenção não é diminuir a gravidade desses eventos e sim pontuar as diferenças. Naquele momento eu era um corpo num país que tinha passado um ciclone. O Idai foi o ciclone tropical mais forte a atingir Moçambique desde o ciclone Jokwe, em 2008. Uma história que ficou marcada na devastação da cidade e que também esteve presente na sala de aula. Um professor de uma das cadeiras que eu cursava visitou a cidade de Beira e nos contou sobre a tristeza que tomava conta do lugar, principalmente, do olhar das crianças. “Não esqueçam de nossas crianças”, disse ele, “Doem mantimentos e também brinquedos, as crianças já estão a sofrer demais”.
E meu corpo era estranho em muitas outras coisas. Era um corpo numa cidade cujo trânsito era confuso e perigoso. E você pode dizer que em São Paulo o trânsito é caótico. E é mesmo, só que a experiência geográfica e espacial é tão diferente. Em São Paulo, atravesso na faixa, caso contrário, posso ser fortemente atropelada. Em Maputo quase não tinham passadeiras (faixas de pedestre). Não sei de que forma, mas os carros e os pedestres se entendiam. Às vezes entre buzinas e xingamentos, mas se entendiam. Mesmo depois de alguns meses lá, ainda não sabia atravessar a rua direito. Em alguns momentos até esperava que alguém fizesse essa travessia e seguia a pessoa. Eu era um corpo na terra das capulanas, o tecido símbolo do país. E não ouse chamar de tecido, o nome é capulana. Não é um simples pedaço de pano, é parte da identidade de Moçambique. Os corpos, em sua maioria femininos, sempre carregavam algum elemento de capulana: roupas, brincos, tiaras, pulseiras, carteiras, trouxas, capulanas amarradas por cima da roupa, estendidas na areia da praia, servindo de apoio para equilibrar a bacia na cabeça e até mesmo para sustentar o bebê no colo enquanto suas mães trabalhavam ou caminhavam pela rua. Capulanas dos mais variados tipos: estampas coloridas, estampas mais escuras, estampas de animais, formas geométricas meio abstratas, combinações de cores, até mesmo capulanas temáticas, nas quais figuravam o nome da Frelimo ou o rosto do Papa, que fez uma visita a Moçambique. E aí era possível perceber como as capulanas falavam muito sobre as pessoas e como os próprios estrangeiros também acabavam se encontrando em suas estampas e formas. Lembra quando eu disse que ver um elefante, mesmo que rápido, foi uma das coisas mais lindas da minha vida? Uma das minhas capulanas preferidas tem desenhos de elefante em sua estampa.
Eu era um corpo estranho em meio a pessoas que, no Brasil, seriam os corpos estranhos. Na sala de aula, colegas muçulmanos. Mulheres usando burca, niqab, shayla, pois cada tipo de véu tem o seu nome. Eu era um corpo em meio a tantos outros corpos, pois lá realmente tinha muita gente de outros países. Encontrei com brasileiros, venezuelanos, dominicanos, vietnamitas, indianos, árabes, alemães, portugueses, egípcios, malauianos, sul-africanos, zimbabueanos, essuatianos, angolanos, cabo-verdianos. E a presença de alguns deles manifestava-se não somente pelos corpos como também por outras coisas. Era comum carros com o sistema de rádio em mandarim ou japonês (eles compravam mais barato desses países). Também era comum produtos indianos e árabes nos corredores do mercado. Uma simples tarefa como comprar um shampoo poderia se tornar muito complicada, pois além de não conhecer as marcas, também não entendia o que estava escrito. Se a gente quisesse comprar uma cerveja no mercado e beber em casa, era importante prestar atenção se o dono do estabelecimento era muçulmano, porque eles não vendem bebida alcoólica. E a própria cidade participava dessa dinâmica. Por exemplo, no Ramadã, época em que os muçulmanos praticam o seu jejum ritual, os restaurantes não abrem antes das 17h. E, dependendo do horário que você faz o seu pedido, sua refeição pode demorar um pouco mais para chegar, pois o funcionário pode estar fazendo uma de suas orações diárias. E tudo bem, porque tudo isso é parte de uma grande riqueza cultural.
Eu era um corpo num lugar onde não se tinha contato físico ou demonstrações públicas de afeto. Em um semestre, contei cinco casais andando de mãos dadas nas ruas. Como diria a mãe de um amigo meu: “você não sabe se esse casal moçambicano é um casal até eles aparecerem com 10 filhos”. Eles diziam que essa falta de contato físico era cultural, aprenderam com seus pais, que aprenderam com seus pais, etc. Mas isso causou debate entre os brasileiros. Era comum que os homens tivessem um relacionamento paralelo sem suas companheiras saberem, então, ter algum tipo de contato físico em público poderia colocá-los em uma situação desconfortável com suas esposas e namoradas. Muitas vezes, estabelecer algumas relações com os moçambicanos era um pouco difícil. E depois me dei conta de que a maioria dos conflitos era oriunda de diferenças culturais. E lidar com essas questões foi uma tarefa mais difícil ainda, pois eu não poderia tomar a minha perspectiva como ponto de partida o tempo inteiro e, ao mesmo tempo, não tinha como esquecer a bagagem cultural que já me acompanhava. Uma tarefa difícil, mas que me ajudou a construir uma nova visão de mundo. E isso foi fundamental, afinal, eu faço Psicologia e o contato com o outro é constante. Eu era um corpo sempre alertado pelos amigos moçambicanos sobre a importância de usar preservativo, pois o índice de HIV no país é muito alto. E isso me chamou muito a atenção. Fiquei pensando na importância desse debate em qualquer contexto, inclusive no meu círculo social brasileiro, incluindo a faculdade, visto que o curso de Psicologia levanta o tempo inteiro a discussão sobre saúde pública e importância do SUS. Eu era um corpo que, junto com minhas amigas, já havia sido seguido na rua, pois, conforme algumas pessoas falaram, o cara estava tentando nos “conquistar”. Aliás, o assédio lá era bem comum, mas muitos tinham uma compreensão diferente a respeito do que poderia ou não ser assédio. Enquanto mulher, não tem como falar da minha vivência em qualquer lugar, seja no Brasil ou em Moçambique, sem falar sobre todos os atravessamentos de ser mulher. E, mais do que isso, é fundamental pontuar que ser mulher parte de diferentes contextos. A minha vivência enquanto mulher branca e brasileira é diferente da vivência de uma mulher negra e moçambicana e de uma mulher branca e moçambicana. Mais uma vez, esquecer nossas concepções ocidentalizadas é essencial. É necessário ouvir as mulheres de lá. E se você ficou interessada, deixo aqui mais duas indicações: Paulina Chiziane, a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, e Enia Lipanga, cantora, escritora, poetisa, ativista, enfim, uma artista que faz parte da parcela que vai contra o conservadorismo no país.
Eu era um corpo num lugar onde, embora a língua oficial seja o português, muitas pessoas sabiam se comunicar por meio de sua língua materna e o único idioma que eu carregava era o do colonizador. Eu era, muitas vezes, um corpo num lugar onde todos sabiam falar português (e alguns somente o português, como eu) e a maioria escolhia se comunicar em inglês. Nesse contexto, era comum ouvir mais de uma língua, até porque todos os países ao redor tinham o inglês como língua oficial, além disso, existiam em torno de 19 possibilidades de línguas maternas presentes naquele lugar. Deparei-me com o português brasileiro e europeu, inglês, francês, árabe, alemão e xangana, principal língua materna de Maputo. Sobre o português, demorei quase dois meses para entender. Se você acha que é a mesma coisa, achou errado. A (in)formalidade de uma “mesma língua” manifestava-se em diversas pronúncias, sotaques e palavras diferentes. De um lado, brasileiros misturando singular e plural na mesma frase, de outro, moçambicanos conjugando o verbo adequadamente e não utilizando gerúndio. Como eles consomem muita coisa do Brasil, entendiam perfeitamente meu sotaque e gírias. Do meu lado, aprendi várias palavras novas, algumas delas em xangana: boleia (carona), mahala (entrada gratuita), de borla (de graça), txilar (curtir, aproveitar), fixe (tranquilo, “de boas”), mata-bicho (café da manhã), kanimambo (obrigada), bacela (o famoso chorinho; sabe quando pedimos um suco e vem aquele copinho com o que sobrou? É isso!).
O primeiro é que a Gestalt não acredita numa estrutura fechada de sujeito. O sujeito não é ansioso, ele está ansioso. E o verbo faz toda a diferença, pois o sujeito se reconfigura. Então, se ele se reconfigura, como falar que ele é uma coisa para o resto da vida? Aliás, a vida é processual, por isso, o paciente não recebe alta, ele encerra processos. E mesmo com a finalização do meu processo de estar em Maputo, ele me compõe enquanto um ser-no-mundo. E saí de lá com uma imensidão dentro do meu ser-no-mundo. O segundo ponto vem para contradizer um mito acerca da Gestalt: o mito de que ela não trabalha com o passado. Isso é mentira. Ela considera o passado sim e até mesmo o futuro, só que de forma presentificada, ou seja, o pre- sente carrega memórias do passado e projetos do futuro. Voltei para o Brasil, mas as memórias, as experiências e as sensações vividas lá estão presentificadas em mim e no meu ser-no-mundo. E falando em experiências, tive como pontapé a experiência acadêmica, mas, nesse processo, muitas outras se somaram a ela. Teve a experiência cultural, geográfica, corporal e, principalmente, afetiva. Até porque tudo nessa vida é movido por algum afeto, não é mesmo?
Afetamos e somos afetados o tempo todo. E esse afeto não está somente na relação que estabelecemos com as pessoas. Construímos uma relação de afeto com as pessoas. E com a terra, com a comida, com os sons, com o clima, com os lugares. Ora, tem tantas outras relações que compõem essas relações. A praia de domingo; o pão com badjia (bolinho de feijão branco) do mata-bicho; o sabor apimentado da comida; o chapa lotado; as capulanas que se manifestam de tantas formas; as estampas das capulanas que nos expressam em suas formas, cores e estampas; o refrigerante de morango, mas que de morango mesmo não tem nada e que não vende por aqui; o barulho da chaleira elétrica que esquentava a água para o banho; o som da língua materna; a areia entre os dedos; a lua gigante e redonda; o sol que antes de se pôr dá um abraço quente; as paisagens mais lindas que já vi; o tilintar dos meticais enquanto contava as moedas; o som dos instrumentos e da dança tradicional; enfim, tantas relações que compõem outras relações. Relações, experiências e sensações que fazem parte de uma grande experiência cultural. Felicidade. Saudade. Incômodo. Admiração. Indignação. Amizade. Vergonha. Alegria. Medo. Coragem. Angústia. Ansiedade. Aprendizado. Escuta. Reflexão. Compartilhamento.
Na Psicologia, sempre falamos da importância da escuta. E nesse exercício de imersão cultural, a capacidade de escuta é imprescindível. Nessa troca de cultura entre brasileiros e moçambicanos, nessa troca de dimensões da colonização, apareceram, por parte de brasileiros, falas como: “Acho que aqui em Moçambique o debate está um pouco atrasado”. E embora eu entendesse a lógica dessa fala, ela também era muito complicada, porque eu também ouvia, por parte dos moçambicanos:
vocês brancos e negros brasileiros chegam aqui com várias concepções formadas. o que é uma cidade desenvolvida e, com isso, vem o estereótipo do que vocês acham que vão encontrar na África, o que é feminismo, o que é racismo, o que é uma pessoa politizada. vocês chegam aqui com tudo isso pronto querendo ensinar. vocês precisam ser mais humildes.
Portanto, termino este texto da mesma forma que iniciei: te convidando a fazer um exercício de imersão cultural. Nesse exercício, lembre-se de que existem variados contextos. Não tome o seu como o único ponto de partida, porque ele não é universal. É um exercício tentar compreender tudo isso e é um desafio propor problematizações, reconhecendo que você está em outro contexto ao mesmo tempo que você traz para esse contexto a sua bagagem cultural.
Agora carrego em mim as raízes desse lugar e, por lugares, não me refiro somente a espaço geográfico, falo também de experiências, sensações e pessoas, principalmente, meus amigos e minhas companheiras de intercâmbio, com quem tive tantas trocas, reflexões e elaborações que atravessam, e muito, minha formação. Moçambique é um país incrível, com lugares lindos e uma riqueza cultural grandiosa. Falar sobre a mobilidade é sempre mover todos esses afetos dentro de mim. Aprendi demais e aprendo até hoje, afinal, não é uma coisa que a gente esquece só porque retornou ao Brasil, é uma experiência que se leva para a vida. Por fim, te convido a levar um pouco da minha experiência para a sua vida também por meio deste texto. E se algum dia você viajar para lá, faça amizade com as moçambicanas e os moçambicanos, conheça a história do país, visite a Ilha de Inhaca, frequente a Associação dos Músicos Moçambicanos, conheça a cena cultural e artística da cidade, prove as comidas típicas, enfim, mergulhe na pérola do Índico e se apaixone como eu me apaixonei. E agora, me despeço de você e dessa história da mesma forma que me despedi de Moçambique: “kanimambo, Maputo, foi absolutamente incrível!”.