Como sou porque fui

Larissa de Oliveira Rios Pereira Santos

Graduada em Letras – Português/Literaturas pela UFF.

Foi intercambista na Universidade Pedagógica de Maputo (Moçambique) em 2018.

Pretexto

Antes de cursar Letras na UFF, passei pelo curso de Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Na época, com 18 anos, tinha certeza de que os posicionamentos políticos da universidade e seu histórico condiziam com a minha ânsia de estudar em uma instituição pública e desenvolver minha formação para fomentar uma mudança social. Ancorada nessa verdade, cursei várias matérias, consegui empregos e comecei a trilhar o caminho da defesa da literatura como um direito. Já no segundo semestre, tornei-me bolsista do Ler UERJ, programa de incentivo à leitura da universidade.

Curiosamente, quase dois anos depois, ocorreu um amigo oculto de livros como forma de confraternização de fim de ano do programa. Ganhei de um colega chamado Pércio Faria o livro Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane. Na dedicatória, ele se desculpava por não achar nenhuma literatura que falasse sobre comunicação animal – a minha paixão acadêmica na época – e dizia também: “não tenho o hábito de presentear pessoas com livros que não li, mas o impetuoso mistério do universo está me sugerindo isso sem parar”.

Pércio fez o que, na verdade, muitos amantes de livros fazem quando oferecem esse tipo de presente: entregou-me uma caixa de Pandora, que abri prontamente muito antes de realizar a leitura de fato. Isso porque, mesmo sem ler, uma indignação potente começou a crescer dentro de mim: quais são os motivos de nunca ter ouvido falar nessa autora? Por que parece não existir nenhuma matéria que irá abordar as literaturas africanas de Língua Portuguesa se elas, obviamente, fazem parte das Literaturas de Língua Portuguesa? Será que eu corro o risco de concluir o curso e receber esse título de “graduada no ensino superior” sem nunca me debruçar seriamente nesses temas?

As dúvidas se empilharam, ampliaram e me atormentaram a ponto de decidir passar novamente pelos processos do vestibular e, dessa vez, escolher uma universidade pública cujo fluxograma acalmaria os meus terremotos mentais. Assim, ingressei na Universidade Federal Fluminense com 22 anos, apesar de faltarem poucas disciplinas a serem cursadas na UERJ e de saber que precisaria viver, pelo menos, mais dois anos na nova universidade. Já nos primeiros meses, me inscrevi em matérias de Literatura Africana e em pouco tempo descobri a possibilidade de intercâmbio para vários países, dentre eles o Moçambique de Paulina Chiziane.

Travessia e desembarque

Antes de realizar a viagem, a Superintendência de Relações Internacionais realizou duas reuniões com os intercambistas daquele edital. A primeira era geral, em um grande auditório, onde todos os alunos da UFF que iriam para os mais diversos países se encontraram para receber mais informações. Naquele espaço, por causa da ansiedade, sentei na segunda fileira de cadeiras na esperança de garantir que não perderia nada. Em dado momento, os organizadores pediram que as pessoas que iriam para Moçambique levantassem o braço, para minha surpresa, sentada atrás de mim estava Vitória Wermelinger, estudante de Ciências Sociais da UFF de Campos, e nos conectamos instantaneamente. Algum tempo depois, a SRI convocou uma reunião apenas com os alunos que iriam para Maputo, foi ali que conheci Iris Pimentel e Rodrigo Natal, ambos estudantes de Psicologia do campus de Rio das Ostras da UFF. Nesse encontro a universidade também chamou Lais Volpe, estudante de Geografia que já tinha participado do intercâmbio em editais anteriores para nos contar sobre a sua experiência e uma professora de nacionalidade sul-africana também para nos apresentar um pouco sobre o que teríamos contato.

Meses depois o avião saía de Guarulhos para Joanesburgo no dia 23 de julho de 2018. No aeroporto, em Maputo, Djabo Joaquim, um estudante de Meteorologia da Universidade Eduardo Mondlane, nos esperava. Quando o avistamos, corremos e o abraçamos, abraçamos também quem estava com ele – que mais tarde descobrimos ser o motorista do táxi. Sorrimos muito, Djabo também sorriu, mas explicou rapidamente ao amigo “são brasileiras”, fui entendendo aos poucos o que isso poderia significar e, mesmo vivendo mais de 180 dias naquela terra, afirmo com tranquilidade que ainda não compreendo por completo a complexidade desse rótulo.

Acolhimento

Em Maputo, a instituição de ensino superior em que realizaria meus estudos foi a Universidade Pedagógica de Maputo, que carinhosamente chamamos de UP. O curso de Ensino de Português tinha matérias específicas para o primeiro e o segundo períodos, como acontece com diversas instituições também no Brasil. Precisei, contudo, segurar um pouco a tristeza ao notar que todas as opções relacionadas à Literatura Moçambicana estavam alocadas exatamente no semestre anterior ao que iria cursar. Investida da segurança de que literatura está em muitos âmbitos além das matérias que levam seu nome, eu me inscrevi em três disciplinas de cursos distintos: Mundo Lusófono, na Faculdade de Letras e Comunicações, História de Moçambique do século XIX até metade do século XX, da Faculdade de História e Antropologia Cultural de Moçambique, vinculada à Faculdade de Antropologia e Ciências Sociais.

Lembro-me de realizar as inscrições presencialmente e de ter o primeiro contato com o espaço acadêmico de Maputo, de chegar agitada para perguntar sobre o alojamento, sobre as aulas que já tinham começado, falar rapidamente, gesticulando e ouvir uma resposta bastante direta da funcionária da universidade: “pare de falar com a boca e com as mãos ao mesmo tempo, preciso ouvir uma coisa só”. Fiquei espantada, mas também respirei fundo. Expus minhas dúvidas e fui respondida, além disso, fui convidada para conhecer a faculdade, alguns professores e colaboradores. Apertei muitas mãos e todos foram muito cordiais. De algum modo, na época, talvez por estar longe de casa, perguntei-me por que as pessoas não abraçavam. Provavelmente tinha alguma fantasia de que seriam calorosas, acabei por indagar isso a uma professora, que riu e disse algo como “nós somos calorosos, mas ninguém vai vos abraçar sem vos conhecer, não é respeitoso”. Concordei, entendi que fui muito bem recepcionada.

A chegada ao alojamento foi mais um momento de apresentações. Fui colocada em um quarto para duas pessoas e a minha colega de quarto, hoje amiga, se chamava Júlia Monzon, nascida na Espanha. Nós nos comunicávamos em portunhol ou inglês e senti ter vencido na loteria intercambista por compartilhar tantos momentos com ela.

O alojamento era um prédio de três ou quatro andares, separados por algumas alas masculinas e femininas, com um espaço externo com tanques para lavar roupa e um grande terraço com bancos e uma pequena sala de estudos. Existia também um refeitório onde serviam mata-bicho (o nosso café da manhã), almoço e jantar – foi ali que fui apresentada ao carapau, peixe comum da região, à xima, algo como um pirão ou uma polenta ou outro alimento muito específico feito com farinha que é de lá e está presente em todas as refeições, e ao caril de amendoim, outro produto alimentar local. Cada ala tinha um vestiário coletivo com três chuveiros, três pias e três banheiros, além disso, a ala tinha também uma pequena cozinha com pia, fogão e geladeira. Tudo isso organizado em uma linha reta como um grande corredor, com portas paralelas umas às outras e em torno de 12 quartos por ala, seis de cada lado. Era comum termos horários para abertura e fechamento de água, tanto para lavagem de roupas qua to para os banhos, intercalávamos entre os quartos uma rotina para limpar as alas e vestiários.

Aquele espaço me pareceu um caldeirão estudantil de Moçambique. Como acontece na UFF e em muitas universidades grandes no Brasil, pessoas de diversos lugares saem dos seus ambientes familiares para estudar, então, no alojamento, convivíamos com outros intercambistas vietnamitas, chineses, brasileiros de estados diversos, por exemplo, além de pessoas de diferentes regiões do território determinado como moçambicano. A vida ali convidava a essas trocas culturais.

Lembro-me de um companheiro de quarto de Rodrigo Natal contar que estendia na sua cama a capulana que sua mãe usava para “nenecá-lo” quando era um bebê. Ao andar pelas ruas era muito fácil perceber a presença da capulana na vida das pessoas, é um tipo de tecido com estampas diversas, muitas vezes associadas a determinados locais ou grupos. Vemos várias mulheres usando-as como saias ou lenços e, quando saem às ruas para trabalhar ou realizar qualquer atividade, prendem seus bebês junto ao corpo com esse mesmo tecido, ato que recebe o nome de nenecar. Então, muito mais do que apelo estético que a expressão genérica tecido africano pode trazer, lá conseguimos perceber o valor sentimental que o item carrega. Para o colega de Rodrigo era uma extensão, uma lembrança do lar, do colo da mãe, agora que estava longe de casa estudando.

Ganhei alguns presentes em Moçambique e o primeiro deles, que recebi dois dias depois da chegada, foi uma capulana, inclusive para não dar sorte para o azar, já que existe um ditado moçambicano que diz “uma mulher preparada tem sempre uma capulana na bolsa”.

Escrevivências [1]

A primeira semana, em terras moçambicanas, foi tão intensa que pareceu que não existiu. Alguns lugares que depois se tornaram familiares e até acolhedores se apresentaram pela primeira vez, como o Mercado do Povo – que eu sempre conheci como Povinho – ou a Associação dos Músicos Moçambicanos, que realiza apresentações todas as quintas-feiras e que eu raramente deixava de ir.

Comecei a frequentar as aulas já na semana seguinte, as turmas eram de mais de 50 alunos e todas elas tinham um chefe de turma: um representante responsável pela ponte entre os alunos e os professores. Ainda assim, tive contato direto com vários docentes e fiquei impressionada ao saber que muitos deles fizeram a sua formação superior ou pós-graduação no Brasil. A partir dessa percepção, surgiu outro aprendizado significativo que foi, aos poucos, se consolidando ao longo do intercâmbio. Entendi que, por vezes, nos alimentamos de informações e histórias de diferentes países do continente africano como forma de resgate e reafirmação de identidades que foram marginalizadas dentro dos processos coloniais e supremacistas, numa perspectiva racial, de gênero ou de sexualidade.

A vivência em Maputo, contudo, mostrou que a cultura brasileira é amplamente conhecida e consumida pelos moçambicanos. Encontrei vários estudantes e professores que nos viam como uma referência, que optariam por uma formação no Brasil para diversas áreas, mesmo dominando outras línguas e podendo tentar vagas em locais glamourizados por aqui, como Estados Unidos e países da Europa. Isso também era notado em espaços não acadêmicos, nossas músicas e telenovelas, até nossa forma de cuidar dos nossos cabelos eram importadas para Moçambique. O fluxo de informação entre os dois países é contínuo apesar de desigual, de modo que algumas atitudes tomadas no Brasil como forma de empoderamento, como a transição capilar, faziam surgir um movimento semelhante por lá, inclusive pelo uso de marcas brasileiras.

As surpresas acadêmicas foram muitas além dessa, destaco uma, que tem relação direta com a minha graduação: a língua portuguesa. No início da minha formação, em 2013, fui rapidamente seduzida pelos estudos de linguística, em especial a aquisição da linguagem. Lembro-me de momentos em que pesquisadores reclamavam da dificuldade de ter contato com uma criança bilíngue, que tenha aprendido duas línguas simultaneamente. Essa memória surgiu constantemente enquanto estava em intercâmbio, pois quase todas as pessoas falavam pelo menos duas línguas e muitas falavam até mais. O território que ficou demarcado como Moçambique, depois dos processos coloniais, é composto por diversas origens e, consequentemente, onde convivem várias línguas diferentes: changana, bitonga, macua, chuabo, chope e ronga são algumas delas. Isso sem citar o uso corrente do inglês, principalmente pela proximidade com a África do Sul e com a Tanzânia, que têm o idioma como uma das suas línguas oficiais. Questionei, então, o porquê de não buscarmos nos aproximar ainda mais desse país para realizar pesquisas linguísticas, dado que existe uma grande admiração e respeito por parte deles com as nossas instituições acadêmicas. Durante esses seis meses, ficou mais evidente para mim o quanto as minhas experiências no Brasil, principalmente no Sudeste, no Rio de Janeiro, supervalorizam a cultura europeia e estadunidense em tantos aspectos que, recorrentemente, não percebem o potencial de aprendizado que outros espaços ao sul da Linha do Equador podem oferecer.

Fora da universidade, a vida cultural de Maputo sempre foi muito ativa. Na cidade, além da Associação de Músicos de Moçambique, também conheci a Associação de Escritores de Moçambique e o Núcleo de Arte, onde poderia ter contato direto com artistas durante seu processo de produção. Vários países, em parceria com suas embaixadas, possuem casas culturais com eventos recorrentes, pude conhecer a escritora Eliana N’zualo, por exemplo, em uma palestra na Embaixada dos Estados Unidos – e realizar com ela, em 2020, o encontro Literatura: território de acolhimento para o projeto que passei a integrar assim que retornei ao Brasil. Fui a um TEDx na Embaixada da Holanda e frequentei exposições e atividades no Centro Cultural Alemão-Moçambicano (CCMA).

Além disso, outro espaço que marcou muito o meu intercâmbio foi o Centro Cultural Brasil-Moçambique. Por lá, tive a oportunidade de trabalhar como mediadora na exposição itinerante Língua Portuguesa Entre Nós, montada pelo Museu da Língua Portuguesa de São Paulo. A organizadora Marina Sartori veio do Brasil para oferecer um treinamento para os mediadores, foi também durante esse momento que conheci o curador, professor da Universidade Eduardo Mondlane, e agora grande amigo, Nataniel Ngomane. A exposição não só retomou o meu contato com a educação em museus, uma vez que fui mediadora no Museu Nacional da UFRJ por dois anos, como também me proporcionou contato com outros estudantes de Língua Portuguesa da UEM.

Durante as semanas de exposição, recebemos grupos escolares e universitários, também trocamos muita informação entre nós mesmos, os mediadores. No segundo andar da exposição, havia uma grande mesa com diversos livros de autores que escreviam em língua portuguesa. Por vezes, quando estávamos sozinhos, sentávamos e líamos uns para os outros, gostava muito desse momento. Lembro bem da primeira vez que fui realizar uma leitura, escolhi um livro de contos infantis, respirei fundo para pegar ar e começar a ler, mas antes que reproduzisse a primeira palavra, Tomás Mondlane me interrompeu dizendo com voz calma de quem ensina criança: “Larissa, minha querida, não é assim que começamos uma história. Cá, antes de contar algo, precisas dizer ‘karingana wa karingana’ e, então, quem está a ouvir responde ‘karingana’”. Aprendi rápido, inclusive pensei ser muito adequado o tom de voz que ele usava para falar comigo, pois o meu primeiro “karingana wa karingana” foi de uma alegria infantil e muito mais alto do que qualquer mulher séria e adulta falaria em um museu.

Após o fim da exposição, os mediadores se reuniram com Nataniel, ele queria saber o que faríamos depois, já que formamos um grupo tão interessante: Isolda Munguambe, Amade Balamade, Tomás Mondlane, Siovana Ney, Keyce Mavume, Eugênia Rosa Matsena, dentre outros, todos estudantes da Universidade Eduardo Mondlane – sem imaginar que mais tarde pessoas como Rose Amadeu e Delfina Lázaro Mbaila também apareceriam para somar conosco, junto com outras pessoas de diversas formações. Nessa reunião, surgiu a ideia do Clube do Livro de Moçambique, um grupo de pessoas que ama ler e falar sobre livros. Gostaríamos de criar um movimento que incentivasse a leitura, então decidimos um local, data e hora: iríamos para um espaço aberto, público, sentar na relva e ler. Àqueles que passassem por perto e perguntassem, responderíamos que estávamos lendo e, se quisessem, poderiam se juntar a nós. Para os encontros seguintes, criei uma arte e fizemos um convite geral no Facebook, assim as pessoas saberiam onde nos reuniríamos para ler.

Da esquerda para direita, Amade Balamade, Larissa Santos, Tómas Mondlane, Siovana Ney e Keyce Mavume.

Com o passar do tempo, o resultado foi muito maior do que poderíamos imaginar, em 2021, o Clube do Livro de Moçambique completou mais de dois anos, participamos de festivais como o Poetas D’alma, que ocorre todo ano, realizamos encontros em diversos jardins de Maputo e também em centro culturais, espaços históricos como a Fortaleza de Maputo e museus. Mensalmente, começamos a realizar encontros com escritores locais e divulgar pelas nossas redes informações sobre suas obras, dentre eles: Virgília Ferrão, Rogério Manjate, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, Aníbal Aleluia, Suleiman Cassamo, Rui de Carvalho, Mia Couto e Paulina Chiziane, que nos acolheu no jardim da sua casa para o nosso encontro naquele mês. Tudo isso apenas em Maputo, mas, aos poucos, outras cidades também passaram a ter um Clube do Livro: Beira, Xai-Xai, Quelimane, Milange, Nampula, Chitima, Inhambane, Vilankulo, Matola, Namacurra, Chimoio, Pemba, Gurúè, Tete e Maxixe são algumas delas.

As experiências acadêmicas e pessoais foram muitas. É impossível esquecer o trabalho que apresentei sobre formação da identidade brasileira, com o intercambista Rhuann Fernandes, do curso de Ciências Sociais da UERJ, que retornou da viagem com uma ideia toda nova para o seu trabalho de conclusão de curso, mais tarde publicado no livro Casamento Tradicional Bantu. Ou os muitos dias no alojamento conversando com Kátia Leonor, estudante de Comunicação Social – Produção Editorial da UFSM, sobre a linda pesquisa que desenvolvia para construir o glossário infantil com o desenho de crianças brasileiras e moçambicanas, mostrando como elas interpretavam determinadas palavras do que seria denominado Glossário Infantil: o direito à coautoria no Brasil e em Moçambique e funcionaria como seu TCC. Também me lembro de fazer viagens, conhecer o Abantu Book Festival 2018 em Soweto, Joanesburgo, com a Diana Zeca, por quem me apaixonei e com quem aprendi a diferença entre o mar e a praia; aprendi a olhar o céu e reconhecer estrelas e planetas a olho nu; descobri que por lá as feiticeiras se transportam em peneiras e não nessas vassouras que muitas pessoas pensam; aprendi sobre como a sociedade moçambicana vê um relacionamento homoafetivo e, principalmente, como manter contato, amando alguém da melhor maneira possível para o momento, mesmo a distância.

Permanências

Após retornar, continuei envolvida nas atividades do Clube do Livro e, como muitos dos meus colegas de intercâmbio, comecei a me dedicar, aqui no Brasil, a uma área que percebi fundamental para mim: a leitura e a escrita. Encontrei, no Projeto Escrevivendo a Liberdade, um espaço em que poderia continuar e ampliar essa ideia de difundir a leitura que ganhou tanta força em Moçambique. Ingressei nesse projeto como bolsista, uma vez que ele surgiu vinculado ao Grupo de Pesquisa e Educação nas Prisões da UFF sob a coordenação da professora da Faculdade de Educação Sandra Maciel e Vanusa Maria de Melo. No Escrevivendo a Liberdade, formamos leitores e escritores em contextos de privação de liberdade, lutando pela noção de literatura como direito.

Novamente, após o meu retorno, novos intercambistas iriam passar por outra jornada que se assemelha a minha em termos de lugar, mas que seria totalmente diferente em termos de vida. Dessa vez, eu fui convidada para participar da reunião da SRI e compartilhar com outros estudantes que passaram a mesma ansiedade da espera para uma nova aventura que eu, fiquei também muito feliz ao perceber que, nesse edital, a UFF conseguiu mais vagas para intercâmbio incluindo diferentes locais de estudo além da capital.

Em termos acadêmicos e pessoais percebi, também, muita afinidade por estudos decoloniais que foram aprofundados nos cursos que realizei na UFF após retornar do intercâmbio. Muitas das inquietações e perturbações vividas durante os seis meses de viagem foram, pouco a pouco, sendo discutidas e estudadas principalmente nas matérias de Literaturas Africanas da UFF ministradas pela professora Renata Flávia da Silva e Júlio Cesar Machado de Paula. Eles me introduziram a teóricos como Silviano Santiago, Thomas Bonnici, Stuart Hall, Frantz Fanon, dentre muitos outros. Além de também ser apresentada a uma gama muito vasta de materiais e discussões voltadas para as Literaturas Africanas em diferentes aspectos incluindo a Literatura Infanto-Juvenil e também um curso mais específico voltado para Ficção em Prosa e Processos de Reafricanização. Foi também na sala de aula da professora Renata Flávia que, finalmente, pude me debruçar por um semestre inteiro para sistematizar os aprendizados do intercâmbio e vivenciados em outras matérias da UFF em um trabalho com o livro Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane.

De certo modo, não há, de fato, um final para o meu intercâmbio. Na carta de apresentação, uma das etapas do processo para realizar a viagem, eu disse:

Essa oportunidade é extremamente preciosa não apenas pelo valor acadêmico, já que o estudo da literatura moçambicana certamente será mais completo a partir da união entre a academia e a experiência cultural, mas também é uma chance de aprofundar meu conhecimento sobre a minha descendência e o que sei sobre a minha identidade.

Na época buscava aprofundamento, aprendizado, recebi metamorfose.

Todo o processo de escolha por uma nova universidade que, posteriormente, se desdobrou em uma oportunidade de intercâmbio e de novos estudos, que se manifestam de forma constante na maneira como eu vejo o mundo e nas minhas escolhas profissionais, foi arriscado e igualmente necessário para a minha formação. A Universidade Federal Fluminense não fechou a caixa de Pandora que foi aberta anos antes na UERJ, mas ali pude viver algo ainda mais precioso: o desenvolvimento de um corpo social, político e intelectual que me permite perceber e valorizar as minhas vivências para interagir com a literatura e com o mundo.

Notas

[1] Conceito proposto por Conceição Evaristo, apresentado em diversas entrevistas da escritora e trabalhos acadêmicos de autores diversos. A noção de escrevivência perpassa a ideia de que pessoas negras devem transformar suas vivências em literatura e que isso é uma forma de resistência.

Referências

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ESCREVIVENDO A LIBERDADE. Literatura: território de acolhimento. Youtube (1h02min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?- v=2Bh1LfB6g_A. Acesso em: 05 fev. 2021.

FERNANDES, Rhuann. Casamento Tradicional Bantu: o Lobolo no Sul de Mo- çambique. Rio de Janeiro: Multifoco, 2020.

LIMA, Juliana Domingos de. Conceição Evaristo: ‘minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra’. Nexo, 26 maio 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98minha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-negra%E2%80%99. Acesso em: 08 abr. 2021.

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA. Língua Portuguesa Em Nós – Moçambique. Museu da Língua Portuguesa, 31 out. 2018. Disponível em: https://www. museudalinguaportuguesa.org.br/release/a-lingua-portuguesa-em-nos-mocambique/. Acesso em: 05 fev. 2021.

SILVA, Kátia Leonor Alves Silva da. Glossário Infantil: o direito à coautoria no Brasil e em Moçambique. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/20169/Da%20Silva_K%c3%a1tia%20Leonor_Alves%20Silva_2019_TCC. pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 05 fev. 2021.

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