Atravessando o Oceano Atlântico

Joice de Carvalho Silva

Graduada em Ciências Sociais pela UFF.

Foi intercambista na Universidade da Beira Interior (Portugal) em 2019.

Formada em Ciências Sociais no grau de licenciatura e estudante do bacharelado no mesmo curso, no Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional em Campos dos Goytacazes, fui contemplada com uma bolsa no Edital 12/2018 do Programa de Mobilidade Internacional UFF.

A experiência com a mobilidade internacional se inicia antes da viagem a outro país. A cada etapa do processo seletivo que passava sentia-me mais próxima de conquistar um sonho, que talvez, até então, não tinha sentido que era possível: ser a primeira da família a cruzar o Oceano Atlântico para estudar, conhecer outra cultura e crescer não só academicamente e profissionalmente com as experiências vividas mas obter um aprendizado pessoal que ampliaria meus horizontes a outras realidades, questões sociais e perspectivas.

Foi um processo intenso e dinâmico. Por um lado, estávamos vivendo um período de intensos ataques às universidades públicas com cortes de verbas[1] que comprometiam muitos setores e que poderiam impactar as bolsas do edital do qual estava participando, isso assombrou o processo seletivo até o final. Por outro, diversas estratégias de resistência institucional fizeram com que o programa se mantivesse, assim como as bolsas. Lembro-me da última reunião que tivemos, reservada aos bolsistas, foi o dia que tivemos a certeza de que haveria recursos para financiamento das bolsas. Acredito que esse dia foi histórico e um alívio, não só para mim. Também foi o dia em que senti a responsabilidade que seria “representar” a universidade em outra instituição e país.

Se posso dizer que esse processo foi difícil, também posso dizer que foi muito coletivo. Tive o apoio de muitas pessoas que acompanham a minha trajetória acadêmica e pessoal e que torceram, sentiram e fizeram parte desse processo comigo.

Foi a minha primeira viagem internacional e tudo foi muito novo, desde a parte burocrática — e haja burocracia — até a necessidade de conhecer um pouco da cultura, teoricamente, para conseguir planejar as vestimentas necessárias, por exemplo. Eu estava a caminho de Portugal no inverno – minha mãe bem me avisou que deveria me preocupar com isso.

No dia da viagem propriamente, precisei me deslocar a uma outra cidade para pegar o avião, lá encontrei duas colegas uffianas, que viriam a ser duas amigas que a mobilidade proporcionou e que teriam o mesmo destino que eu, a cidade de Covilhã em Portugal; compartilhamos as tensões, dúvidas, inquietações e descobertas até o final da mobilidade.

Com uma certa dificuldade de conseguir informações da universidade sobre moradias, e não tendo a certeza do alojamento estudantil, recorri a uma amiga brasileira que já tinha participado do programa de mobilidade e que morava na cidade. Foi ela e seu companheiro que nos recepcionaram em sua casa e apresentaram pela primeira vez Covilhã, apelidada carinhosamente pelos estudantes de Covilove.

Chegamos na cidade com poucos dias para iniciar o período letivo, foi uma corrida contra o tempo para conseguir um local para morar que estivesse dentro do orçamento que tínhamos. Por fim, conseguimos, depois de não poucos esforços, três vagas na moradia universitária. Lugar em que mais houve um intercâmbio cultural durante essa trajetória. Lá estavam outros estudantes de lugares distintos do mundo. Alguns que falavam português e outros que ainda não entendiam uma palavra.

No alojamento, todos os espaços eram compartilhados, mas ainda assim não dava para conhecer todos os moradores e suas nacionalidades. Era sempre uma surpresa ir na cozinha e ver comidas que nunca tinha visto, línguas que eu não entendia uma palavra sequer. Mas foi muito enriquecedor absorver essas experiências e saberes só por compartilhar um mesmo espaço.

Imaginei que estar em Portugal possibilitaria uma integração cultural diversa, e que embora falássemos a língua portuguesa, as simbologias e significados poderiam ser totalmente diferentes e são. Porém, o que não esperava é que além da cultura portuguesa estaria em contato com outras culturas de países como Turquia, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Polônia entre outros.

A Universidade da Beira Interior

O primeiro contato que tive com a estrutura da universidade foi através da biblioteca, à qual precisei recorrer assim que cheguei para escrever um relatório final do programa de iniciação científica do qual fazia parte. E me encantou saber que tinha esse espaço e que parte dela ficava aberta 24 horas — nessa altura, não imaginava que esse seria um dos espaços mais importantes da minha mobilidade e do fim do período, lá encontrei uma imensidão de livros e tranquilidade para estudar.

Embora tivesse me candidatado para fazer o curso de Sociologia, consegui montar um plano de estudos interdisciplinar, passando pela Sociologia, Ciência Política, Relações Internacionais e Estudos Culturais, que foram essenciais tanto no conteúdo das aulas, no conhecimento de novas teorias e metodologias, quanto como na vivência com professores e estudantes, isso possibilitou identificar aspectos culturais diferentes, que por vezes, geravam conflitos.

Em algumas disciplinas estava acompanhada por colegas brasileiras, o que facilitava a interação nas dinâmicas em aula. Mas também tive uma disciplina em que era a única brasileira, e isso fez toda diferença para perceber o que significava ser uma estudante brasileira em Portugal, levando em consideração as experiências positivas e negativas que isso pode carregar.

Nas aulas havia curiosidades e trocas mútuas sobre aspectos culturais, costumes e políticas, tanto de assuntos brasileiros quanto portugueses e entre outros, assim como comparações. Essas aulas foram para além só das temáticas propriamente ditas, mas uma troca de saberes locais, quando não de contradições.

Queria relatar só coisas boas das experiências com a mobilidade em Portugal, mas fato é que seriam meias verdades. Lá também percebi por parte de alguns um forte sentimento colonialista em que ficava evidente a diferença de tratamentos de acordo com a nacionalidade das pessoas, expressados dentro e fora da sala de aula, às vezes manifestados de forma mais sutil e outras mais escancaradas. Lembro-me especificamente de uma aula em que o tema veio à tona, nessa aula em específico, havia muitos estudantes brasileiros. Uma provocação inicial que começou com algo como: Os portugueses têm que sentir orgulho de ter colonizado o Brasil? foi a deixa para a pior aula da minha vida. Nessa aula vi pessoas defendendo a colonização como se tivesse sido muito positiva e uma forma de “ajudar a civilizar o Brasil”, um senhor batia palmas quando se falava que deveria sentir orgulho sim, em contrapartida, e posso dizer, infelizmente que em minoria, houve resistências a esses posicionamentos. Foi nessa mesma turma que no início do período letivo, fui até o professor informar que por questões burocráticas da universidade ainda não tinha acesso liberado à plataforma que reunia os textos e atividades, o professor prontamente entendeu e pediu para que um aluno me ajudasse com essa questão, porém o aluno português se recusou a me repassar o conteúdo ou me ajudar de qualquer outra maneira, ele literalmente “torceu o nariz” na minha frente e não fez questão alguma de parecer solidário, o professor presenciando tal situação se disponibilizou ele mesmo a me enviar o material.

Fora das salas de aula, aconteciam diversos eventos acadêmicos muito agregadores, sobre temáticas variadas. Tive a oportunidade de organizar um debate sobre as “Perspectivas sobre o combate à violência contra as Mulheres” no dia 25 de Novembro — Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres – junto com uma professora que foi bem atenciosa do início ao fim do período letivo e com colegas que, ao contrário da experiência anterior, foram muito solícitas.

A própria estrutura física da universidade conserva uma parte importante da história da cidade de Covilhã.[2] Logo, estar no espaço físico da universidade era também uma forma de aprender sobre a nova cidade em que estava localizada e isso foi muito enriquecedor.

As tradições estudantis como a semana de “recepção aos caloiros” — que são uma série de atividades de integração entre veteranos e novos estudantes — me chamou bastante atenção, não só pela semelhança de algumas coisas com as tradicionais recepções aos calouros no Brasil, mas também pela completa diferença em outros aspectos. Não participei diretamente desse evento pois era uma estudante que estava de passagem pela universidade, fiquei como espectadora e pude perceber e refletir sobre o tratamento aos ingressantes, que se por um lado era divertido e criativo, por outro era completamente violento e vexatório, principalmente quando se tratava de imigrantes.

Estar em outro país lusófono, diferente do que nasci e cresci, e o contato com pessoas de outros países lusófonos, me fez perceber o quanto as línguas e símbolos são únicos, embora tenham semelhanças. Escutei de colegas lusófonos que nós, brasileiros, não falamos português, mas sim “brasileiro” e isso fez muito sentido para mim.

“Um brinde a Covilhã que brindou a nós”[3]

Lembrar da Covilhã, e mais especificamente da mobilidade internacional, é ter saudade das amizades, parcerias e experiências que fiz e tive por lá, das comidas diferentes que provei e dos lugares lindos que visitei. É ter uma sensação de querer voltar no tempo para viver mais um pouquinho e mais intensamente tudo. É sentir as temperaturas negativas do inverno, lembrar da neve — que tive oportunidade de ver pela primeira vez — e conseguir sentir um aconchego.

É lembrar também que nem tudo foram flores, não conseguiria descrever o tanto de saudade que tive do meu país, do clima tropical e principalmente das pessoas que amo e que faziam parte do meu quotidiano, às vezes um medo que nem sei explicar de onde vinha e que se não fossem as estratégias adotadas para diminuir as distâncias, teria sido mais difícil.

Covilhã foi o ponto de partida para conhecer outros lugares, como o país vizinho, Espanha. Em Madri, desfrutei muito do meu cartão de estudante quando descobri que a entrada dos museus não era cobrada para estudantes. Lá conheci o “Museo Nacional de Antropología”, que no dia estava com uma exposição sobre os museus comunitários do Rio de Janeiro e o giro decolonial, foi uma exposição que me mostrou que ocupar todos os espaços possíveis é importante e uma forma de dar visibilidade para nosso país e para as pautas presentes nele.

Por fim, posso dizer que voltei ao Brasil diferente do que saí. Seria difícil relatar todas as experiências e aprendizados que tive na mobilidade internacional, mas a certeza que fica é que me possibilitou entender na prática a importância da integração cultural e de como essa relação amplia nossos conhecimentos, campo de visão sobre a sociedade e sobre nós mesmos e isso na profissão que escolhi estudar faz total diferença.

Aproveitei essa oportunidade única e todas as experiências que construí para continuar minha formação e estudar a integração entre os países, assim me inscrevi em um programa de mestrado e fui aprovada. No projeto reuni sentimentos, curiosidades e inquietações que só foram possíveis pelo olhar que a mobilidade proporcionou. É por isso e muito mais que defendo que todos os estudantes deveriam ter a possibilidade de vivenciar essa experiência e falo com muita propriedade que vale muito a pena, que transforma e agrega na formação acadêmica, pessoal e profissional. Tudo isso não seria possível sem uma universidade pública, gratuita e de qualidade! Valeu UFF!

Notas

[1] Para mais informações acessar: [Reportagem do Estadão]

[2] Para saber mais, acessar: [Página da Universidade da Beira Interior]

[3] Frase tradicional utilizada pelos estudantes da Universidade da Beira Interior.

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