Entre cores e capulanas
Joana Penêdo da ConceiçãoGraduada em Biblioteconomia e Documentação pela UFF.
Foi intercambista na Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) em 2019.
Em março de 2019, recebi o resultado do edital de mobilidade acadêmica internacional da Universidade Federal Fluminense com aprovação pelo programa, no módulo bolsista, para estudar durante um semestre na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, Moçambique. Até então, era aluna do curso de Biblioteconomia e Documentação da UFF e estava pleiteando uma vaga de aceite nas universidades de Évora, em Portugal, e na UEM, em Maputo. Após o processo de seleção da SRI/UFF (Superintendência de Relações Internacionais), o qual avalia o CR, Currículo Lattes e a carta de intenção do aluno, o aceite foi recebido com muita felicidade por mim. Neste processo inicial, os alunos participam de uma reunião com a SRI, onde todas as diretivas do processo de intercâmbio são apresentadas, bem como temos um mentor à disposição para nos acompanhar e sanar nossas dúvidas até a ida ao país de destino.
Ao tomar conhecimento que estava apta a embarcar nesta nova empreitada para Moçambique, fiquei extremamente feliz, pois escolhi o país em questão não somente por me interessar pela sua cultura, mas também pela motivação de viver em um país que tem sua história bem próxima a do Brasil. Moçambique é um país ex-colônia de Portugal, o qual travou inúmeras batalhas tanto políticas quanto civis, a exemplo da Guerra civil que perdurou entre os anos de 1977 e 1992, seguida do processo de independência do país entre 1964 e 1975.
Durante minha preparação para a viagem, ainda no Brasil, cursando então o sexto período do curso na UFF, em 2019.1, a comissão da superintendência internacional da Universidade Eduardo Mondlane manteve contato comigo e com os outros alunos aprovados da UFF para preparar nossa chegada à cidade de Maputo.
Quanto ao processo, todas as etapas aconteceram rapidamente, considerando que a aprovação aconteceu no fim de março e em julho estava embarcando para o referido país, pois optei em cursar o período de 2019.2, já que a conclusão do curso na UFF estava próxima.
Entre abraços de amigos e amigas, familiares, esperançosos com a minha partida, estava vivendo um misto de sentimentos, ansiedade, felicidade e medo do novo, quando ainda considerava que tudo seria extremamente diferente ao chegar em outro país, mas ora, estou falando de um país no continente Africano, como seria tão diferente, se a terra mãe tem tanta influência na construção da história do Brasil? E é assim que dou início ao relato da melhor experiência acadêmica que a UFF poderia me proporcionar.
Minha jornada se inicia no dia 29 de julho, no ano de 2019. Saio da rodoviária de Niterói, em direção a São Paulo, fico algumas horas na casa do meu amigo Eduardo, até seguir para o Aeroporto Internacional de Guarulhos, onde pegaria o primeiro voo para Johanesburgo, África do Sul, faço um último contato com a minha mãe e meus amigos antes de embarcar. Entre São Paulo e Maputo, com escala em Johanesburgo, a viagem durou em média 18 horas. Mas o acesso à internet em Maputo é um pouco limitado, então já sabia que iria demorar até entrar em contato novamente com alguém. Já no aeroporto de Maputo, um funcionário da UEM estava me esperando para me levar até a casa que iria residir nos próximos meses no bairro do Alto Maé com outras alunas intercambistas, minha grande amiga Linda, da Itália, e Viviani, da UFPR, que foram minhas companheiras durante todo o intercâmbio.
Nos dois primeiros dias, foi preciso me acostumar com o fuso horário, Maputo está há cinco horas à frente do Rio de Janeiro, depois me acostumar com o idioma, ainda que se fale português, em Moçambique há em média vinte línguas maternas, então o português lindamente se mistura com essas línguas, principalmente com o changana, língua predominante em Maputo. Não há como negar a explosão de vida nas ruas da cidade, cores, aromas, sabores… Também há muitas coisas em comum com a cidade do Rio, como o descaso com o transporte público, que são os chapas — os chapas são pequenas kombis, ou minivans, que cabem entre doze e dezesseis passageiros, mas que vão até trinta pessoas juntas ao mesmo tempo em uma mesma corrida — a passagem custa em média dez meticais, na época era algo como vinte centavos em real, metical é a moeda local do país.
O chapa, Alto Maé, Maputo (2019)
Já na universidade, pude escolher quais cadeiras (disciplinas) gostaria de cursar, no meu caso eu poderia escolher entre ter aulas no campus principal ou na Escola de Comunicação e Artes (ECA), semelhante ao IACS/UFF. Optei em escolher duas cadeiras de biblioteconomia (História de África e Bibliotecas Públicas e Escolares) e uma do curso de Antropologia (Cultura e Sexualidade). Antes de embarcar para Moçambique, as disciplinas são escolhidas juntamente com a coordenadora do curso da UFF, porém, por conta da grade de horários ou pré-requisitos, você pode optar por outras disciplinas, e, como eu era aluna quase concluinte, pude escolher uma disciplina de outro curso, fica a critério do combinado com a coordenação do seu curso de origem.
A experiência na universidade em si foi muito diferente do que estava acostumada na UFF, as aulas são bem convencionais e tradicionais, existe um chefe de turma, o qual na maioria das vezes somente este é responsável por levar as dúvidas da turma para o professor, bem como passar avisos dos professores para os alunos. Os acadêmicos, inclusive os alunos e alunas são bem formais, tanto em apresentação de trabalhos, quanto em avaliação das provas, testes e seminários. Se você está acostumado com a Cantareira entre os horários de aula, para conversar com os amigos e descansar entre as aulas, precisará se acostumar com os horários rígidos e ter muita disciplina com os prazos, horários e todas as atividades relacionadas à universidade. É importante frisar que o intercâmbio acadêmico é uma ótima oportunidade para conhecer outro país, viajar, mas também é preciso se dedicar aos estudos, uma vez que estamos representando a UFF em outro país. Nossa participação acadêmica conta muito para o programa de mobilidade internacional continuar, então quando somos os alunos intercambistas os holofotes estão direcionados à nossa produção e desempenho acadêmico.
Dito isto, julgo imprescindível comentar sobre a professora Delfyna Lázaro Mateus, que ministrou a aula de Bibliotecas Públicas e Escolares, além de aprender muito em suas aulas, que são únicas, dinâmicas, com muitos debates, ela participou como membro externo da minha banca de trabalho de conclusão de curso no fim de 2020.
Além disso, tive a honra de palestrar na Feira do Livro de Maputo, que é um evento comparado a Bienal do Livro, no Brasil, que conta com a presença de escritores nacionais e internacionais, inclusive brasileiros. Fui convidada para falar em um painel sobre “O papel da biblioteca escolar no incentivo à leitura”, dividindo a mesa com o diretor da Biblioteca do Centro Cultural Camões e da Secretária de Cultural de Maputo. Este evento contribuiu imensamente para minha jornada acadêmica, adquiri experiência e pude compartilhar em outro país sobre meus aprendizados na UFF, tanto dos aprendizados em sala de aula, quanto de pesquisa, com isso, dando visibilidade e criando redes de contatos que são essenciais para quem tem vontade de seguir na carreira universitária, seja como pesquisadora ou professora.
Além desse, houve outros eventos que participei como ouvinte, como o Seminário Internacional de Ciência Aberta, onde estavam presentes pesquisadores brasileiros da área da Ciência da Informação e também pesquisadores da Suécia, Portugal, entre outros. Ia acompanhada dos meus colegas de turma, que sempre foram muito gentis e cordiais me recepcionando e me ensinando os costumes de Moz, carinhosamente como Moçambique é apelidado.
Estou na metade do relato e me vejo sentada no pátio da universidade comendo sopa de feijão, era o meu almoço de todos os dias na UEM com as minhas amigas Linda e Viviani. Isso me faz lembrar de como a comida em Moçambique é rica! A maioria dos pratos são feitos com legumes e suas folhas, por exemplo, a matapa que é feita com a folha da mandioca pilada, com leite de coco e amendoim (minha comida favorita), a nhangana que é a folha do feijão nhemba, madledlele, que são as folhas da batata doce, Mboa, as folhas da abóbora, são a base da culinária moçambicana, então eu, vegetariana, estava em casa. Para além das verduras também existe a Xima que é uma papa feita com farinha de mandioca, sempre vem no prato principal com um molho. Os pratos típicos custavam em média entre 80 e 120 meticais (uma média entre seis e dez reais), principalmente no Mercado do Povo, ou como meus colegas me ensinaram o “Povinho amado”, um mercado no centro de Maputo, com muitas barracas de comida, que são feitas todas à lenha, que se mistura com bar, quermesse, venda de legumes, galinhas… Nas ruas comemos muito o pão com badjia, que tem influência indiana, a badjia é um bolinho frito feito com feijão nhemba pilado, geralmente as mamas, como são chamadas as mulheres mais velhas, pilam o feijão com os temperos e fritam na mesma hora.
Ainda sobre o aspecto cultural, a vida noturna em Moçambique começa e termina cedo, os eventos são entre 18h da noite e 01h da manhã, o transporte público para de rodar em média às 23h, então, depois desse horário, só é possível se locomover com táxi ou o txopela, que são os tuk tuks, um modelo de triciclo motorizado.
Dois lugares que não se pode deixar de conhecer em Maputo são a Associação dos Músicos e a Associação dos Escritores Moçambicanos. Toda quinta-feira tem apresentação dos músicos e dançarinos locais, é um ambiente ótimo para descontrair, conhecer pessoas, muitos intercambistas de outros países frequentam a associação, bem como brasileiros e moçambicanos.
Também há os centros culturais, Franco-Moçambicano, o Moçambicano-Alemão, a Fundação Fernando Leite Couto, fundada pelo famoso escritor moçambicano Mia Couto e o Brasil-Moçambique, onde ocorrem eventos e festivais, residências artísticas, musicais, cinematográficas, shows, festival de poesia e teatro. Quando as apresentações não são gratuitas o valor das entradas é acessível.
Pessoalmente tive a honra de conhecer duas figuras de quem tenho muito apreço pelo trabalho, o escritor Mia Couto, o qual autografou um livro que trouxe desde o Brasil comigo durante a viagem, “Terra sonâmbula”, com quem pude interagir e conversar em um evento literário na capital. Outra personalidade moçambicana em que já acompanhava o trabalho foi o rapper Mano Azagaia, o qual tive o prazer de ir em um show do cantor em Maputo.
Além desses eventos, não poderia deixar de falar sobre as viagens que fiz durante minha estadia em Moçambique. Como o custo de vida é relativamente baixo, há a possibilidade de conhecer outros lugares para além da capital onde a universidade estava localizada. Então, aproveitei os feriados nacionais e o período de férias para me aventurar junto das minhas amigas e companheiras de residência pelo país, e também fora dele, uma vez que Maputo está localizada no Sul do país e faz fronteira com o Reino de Essuatíni, antiga Suazilândia e África do Sul.
Primeiramente, o visto concedido aos estudantes brasileiros pela Embaixada de Moçambique, ainda no Brasil, é o de estudante e este tipo de visto não permite que em Moçambique você saia do país, uma vez que já esteja residindo no mesmo, então foi preciso solicitar um documento para o SRI da UEM e levar até a Embaixada em Maputo para emitir um novo visto. Com este visto em mãos, é possível viajar para outros lugares, levando em consideração que são países bem próximos de Maputo e é preciso deixar tudo avisado na universidade para que eles mantenham controle. É importante lembrar que quando estamos em outro país devemos respeitar a cultura local, aprender ao máximo e ter a mente aberta para as diferenças e costumes de cada país. Uma das coisas que aprendi morando em Maputo é que estamos constantemente adquirindo conhecimento, este é o propósito também do intercâmbio, o aprendizado e a troca de saberes e culturas entre povos e nações distintas.
A primeira viagem que fizemos foi para Essuatíni, que fica a quatro horas de Maputo. Foi incrível conhecer um país com um modelo político e econômico totalmente diferente do que estava acostumada. O país segue um modelo de monarquia absolutista, onde o rei tem poder absoluto sob o povo e a nação. A língua oficial é o inglês e também segue a mesma linha de Moçambique com outras línguas maternas.
Festival Umhlanga (2019). Essuatíni.
Fomos assistir ao Festival Umhlanga ou Reed Dance, que é um rito anual para a escolha da nova esposa do Rei de Essuatíni. Somam mais de quarenta mil meninas e mulheres de faixa etária entre oito e vinte e dois anos como candidatas, que durante sete dias participam de atividades que envolvem entreter a rainha, se preparar para apresentação da dança e beneficiar o reino. Esse evento é chamado também de Reed Dance por acreditarem que a cana-de açúcar representa a pureza (virgindade), e apontam como ideia primária do festival a preservação da virgindade das meninas, uma vez que Essuatíni é o país com maior índice de pessoas com HIV/AIDS no mundo.
As candidatas carregavam as folhas de cana que foram cortadas juntas simbolizando o senso de união antes de adentrar a arena com suas roupas coloridas que representam cada província. A dança é feita simultaneamente numa explosão de cores e cantos em uníssono.
No sétimo dia, a nova princesa é escolhida pelo rei. Sim, o rei desce até a arena, agradece as 40 mil meninas e escolhe uma. No oitavo dia, algumas candidatas são escolhidas para recolher pedaços de carne ofertados pelo Rei.
Repensar e abrir meus olhos para novas culturas sendo uma cidadã ocidental, americana do Sul, latina, ainda que mulher preta e racializada, é mais do que mostrar meu ponto de vista e evitar o etnocentrismo e o relativismo cultural, é contar uma história. Compreender as diferenças e conviver com ela todos os dias é uma realidade no Brasil, se eu vivo coisas hoje que de certa forma ferem o que eu entendo como direitos humanos, tenho que me lembrar que são culturas distintas, papéis sociais e hierarquias para além do que conheço. Parece que há limites para o relativismo. E é importante não viver no mundo sob uma perspectiva turista.
Outro destino, que conhecemos em Moçambique, foi na Província de Inhambane, a praia de Tofo, que é uma região oceânica com muita vida marítima. A viagem de Maputo dura entre seis e oito horas de chapa, sim aquele chapa que mencionei anteriormente, o custo é menor do que o ônibus, então sempre buscamos fazer essas viagens de maneira mais genuína possível. O local é banhado pelo Oceano Índico, assim como o restante do país, as pessoas são muito receptivas e adoram contar as histórias da região.
Também conhecemos a região de Ponta do Ouro, que fica a duas horas da capital, outra região praiana bem próxima da cidade. E a Praia do Catembe, que fica ao redor da Baía de Maputo, podendo ir de ônibus ou em um pequeno barco, se tiver espírito aventureiro. O nosso lema diário era: “Todo dia é uma aventura viver em Maputo!”.
Nos arredores da cidade de Maputo, também é possível conhecer alguns lugares quando acompanhada dos amigos moçambicanos que são ótimas companhias para apresentar as melhores cenas da cidade (as cenas são os eventos). Outra palavra que falamos muito lá é: maningue, que significa: muito, então falamos: “esta cena está a bater maningue nice!”.
A última viagem feita durante o intercâmbio foi no período de férias escolares. Desta vez o destino foi a África do Sul, com a minha fiel amiga e companheira, Linda. Tínhamos o sonho de conhecer Cidade do Cabo e Johanesburgo, então nos programamos durante toda estadia em Maputo para poder conhecer o país sul africano nas férias de dezembro, após o término das obrigações acadêmicas.
Johanesburgo fica a oito horas de Maputo, fomos de ônibus, e o que mais me chamou atenção, foi a modernidade da África do Sul. De certa forma, já havia me acostumado com a vida em Maputo, os costumes, com o tempo vagaroso da cidade, que é totalmente diferente do nosso no Brasil, os prazos e tempo de resposta para as coisas demora mais, o acesso à internet não era muito bom, então estava vivendo uma vida mais tranquila. Chegar em Johanesburgo foi como ser criança em cidade grande! O país tem muita estrutura, é moderno, tem shopping, rede de fast food em cada esquina, trem, metrô, ônibus, tudo que era normal no meu cotidiano no Rio de Janeiro e já nem me lembrava mais.
Na Cidade do Cabo conheci paisagens lindas, dessas de cinema, inclusive a cidade é cenário de muitos filmes, tem um ar jovem, muita vida noturna, além de montanhas, praias de um mar azul cristalino, praias onde se pode nadar com os pinguins, lugares para fazer trilhas como a Lion’s Head e a Table Mountain, restaurantes, bares… É perfeito!
Os idiomas oficiais da África do Sul são o inglês, o afrikaans (herança da colonização inglesa e holandesa) e o zulu, além de outras línguas maternas, como em todo o continente Africano.
Na capital, Johanesburgo, há também muita vida e movimentação na cidade, a arquitetura carrega muita influência britânica e holandesa, pois o país foi colônia do Reino Unido e Holanda. O ritmo de vida é mais acelerado e o foco da viagem é mais histórico e cultural nesta cidade. Ao visitar o Museu do Apartheid e o Constitution Hill, fica evidente os rastros do processo do apartheid no país, as diferenças sociais e raciais e como a figura de Nelson Mandela foi importante neste processo para a nação sul africana. Linda e eu também conhecemos o Parque Natural de Pilanesberg, e tive a experiência única de ver de perto os maiores animais, que pensei que só veria no canal Animal Planet. Diferente de um safári, nos parques naturais os visitantes estão conscientes e assinam um termo de responsabilidade sabendo que ali é o habitat dos animais. Foram quinze dias de viagem na África do Sul e nos outros locais que citei geralmente aconteciam aos fins de semana.
De volta a Maputo, mais uma vez me sentia em casa, as cores das capulanas (que são os tecidos de cores vívidas que as mulheres usam amarrados na cintura, na cabeça, ou para segurar os bebês junto ao corpo), o bom dia das pessoas, as idas aos mercados de rua, as compras na Baixa (região central onde se encontram os “camelôs” da cidade), as últimas caminhadas pelas ruas do centro e a última ida à Associação na quinta-feira.