Epifanias de uma mobilidade em meio à pandemia
Giulia Lara Félix PazGraduanda em Medicina Veterinária pela UFF.
Foi intercambista na Universidade do Porto (Portugal) em 2020.
Desde bem nova tive vontade de estudar fora. Talvez por influência dos meus pais, que sempre me incentivaram a valorizar a pluralidade que existe além das fronteiras, ou talvez pelo privilégio de ter nascido em um mundo globalizado, que dentre todas as suas particularidades, traz consigo a ideia de “cidadão do mundo”. A troca de cultura e a possibilidade de integrar diferentes abordagens de conhecimento sempre foram coisas que me fascinaram. Ao mesmo tempo, sempre soube que queria cursar Medicina Veterinária, e, na época, não conseguia enxergar como esses dois objetivos poderiam convergir. Assim, meu objetivo principal era o de ingressar em uma universidade de prestígio, que me fornecesse uma formação que possibilitasse me tornar uma profissional de excelência na área que escolhi e a Universidade Federal Fluminense veio como a resposta para esse anseio.
Quando ingressei na Faculdade de Veterinária da UFF, encontrei exatamente o que esperava: um ambiente acadêmico que me permitiria ter o desenvolvimento profissional que eu pretendia. Ao ingressar em uma universidade federal, porém, é inevitável que o aluno descubra que sua experiência universitária não se limita às aulas, tarefas e obrigações como discente. Existe toda uma comunidade na qual ele passa a ser inserido e um ambiente acadêmico cujas proporções são mais amplas que os departamentos e sua faculdade. A universidade é, por si só, um mundo de possibilidades, e, na UFF, eu tive a sorte de descobrir uma universidade integrada ao ambiente internacional, que valoriza a internacionalização do currículo das mais diversas áreas e oferece oportunidades que eu antes nem julgava possíveis. Assim, descobri que não necessariamente precisaria escolher um sonho em detrimento de outro, e que seria, de fato, possível enriquecer ainda mais a minha formação profissional com uma experiência de intercâmbio na minha área, ainda na graduação.
Como sempre fui uma pessoa de planejar muito extensivamente todos os meus passos, pesquisei a fundo todas as oportunidades que as parcerias internacionais da UFF poderiam me oferecer e o momento mais propício para realizar a mobilidade. Com pouco mais da metade do meu curso concluída, em um momento em que julgava já ter uma base suficiente para aproveitar melhor as disciplinas no exterior e ser até mesmo capaz de apreciar eventuais diferenças das abordagens adotadas nos dois países, me apliquei para a mobilidade, e após todo o trâmite e a ansiedade que se dá do início do processo até o recebimento da carta de aceite, recebi oficialmente a notícia de que realizaria um período de mobilidade no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), na Universidade do Porto.
Por mais preparada que uma pessoa esteja, mesmo munida de pesquisas, dados e fatos obtidos, nesse extenso processo de preparação, a realidade sempre vem como uma certa surpresa. E assim, após toda a cansativa etapa de preparativos que vem após a tão esperada carta de aceite, no início de 2020, desembarquei em Portugal.
Todo o processo de iniciação em uma nova universidade é um tanto intimidador. Afinal, mesmo após alguns tantos semestres já cursados na universidade de origem, essa nova etapa faz com que sejamos como calouros novamente: aprender as normas, diretrizes e particularidades administrativas da nova universidade, o esquema de aulas e provas, e até mesmo itens inerentes à rotina acadêmica, como aprender um caminho para faculdade, encontrar as salas de aula, bibliotecas, cantinas e os principais pontos onde se pode obter café (algo de crucial importância para a sobrevivência na vida universitária).
Nesse ponto, o programa de cooperação internacional da UFF foi como uma salvação para mim. No semestre anterior à minha viagem, tive a oportunidade de conhecer algumas alunas da Universidade do Porto que estavam realizando um período de mobilidade na Faculdade de Veterinária da UFF (e que nesse tempo de convivência, acabaram se tornando queridas amigas), o que tornou um tanto menos ameaçadora toda a aventura de desbravar pela primeira vez os labirintos que eram os corredores do ICBAS.
A experiência de mobilidade é algo um tanto complicada de descrever, pois envolve uma série de novas situações que a tornam uma etapa muito particular na vida. A descoberta de um novo país, uma nova cidade, a inclusão em um novo meio social, toda a logística do dia a dia — que deve ser adequada a um período em que se deseja conciliar o melhor da vida acadêmica com a possibilidade de explorar novos lugares — são todas experiências extremamente únicas. E o mesmo vale para a cultura. O intercâmbio é capaz de colocar a pessoa em uma categoria um tanto peculiar, a tornando ao mesmo tempo turista e cidadã, capaz de experienciar o local em meio a uma rotina, causando uma imersão em uma história e tradições não antes conhecidas.
Até que, no dia 18 de março de 2020, pouco mais de um mês após o início das aulas, foi decretado estado de emergência em todo território português, em virtude da pandemia de COVID-19. Com esse decreto, a circulação pelas ruas foi limitada, sendo permitida apenas para acesso a serviços essenciais e toda a rotina a que todos estavam acostumados teve sua estrutura alterada. E dessa forma, eu, que antes de sair do Brasil nunca havia nem mesmo morado fora da casa dos meus pais, me vi sozinha, do outro lado do oceano Atlântico, em meio a uma pandemia.
Nossas aulas, uma vez que o semestre já havia sido iniciado, foram rapidamente adaptadas ao meio virtual. Assim, as aulas e debates em auditórios deram espaço às reuniões por videoconferência na plataforma Zoom, e os professores tentaram diferentes técnicas para que pudéssemos extrair o máximo da experiência acadêmica mesmo em um molde fora do convencional – como por exemplo um grande investimento na discussão de casos pautados nas experiências profissionais dos docentes (através dos quais eles conseguiram expor diversas intercorrências que possivelmente nos depararíamos no futuro profissional, lançando mão de materiais como vídeos e imagens documentadas de procedimentos).
Durante esse período, uma vez que as idas à rua se limitavam a saídas para o mercado, as atividades pela cidade foram substituídas por novos hobbies desenvolvidos dentro de casa. Cuidar das plantas, encontrar novas formas de se exercitar (muitas até mesmo incentivadas por programas on-line da própria Universidade do Porto) e até mesmo a redescoberta da culinária fizeram parte da minha nova rotina durante esse período de mobilidade. Mas, sem sombra de dúvidas, a habilidade (se é que posso chamar assim) mais importante desenvolvida nesse período foi a de encontrar formas de estar próxima às pessoas mesmo com a distância física.
Graças à tecnologia, mesmo a mais de 7.000 km de distância, pude ter minha família e amigos presentes na minha vida quase que diariamente. Uma coisa que não costumo escutar muito quando se discute sobre intercâmbio, é que toda vez que nos ausentamos de casa por um longo período de tempo (mesmo que seja em situações um pouco mais convencionais, independentemente de uma pandemia) ficamos sujeitos a lidar com situações inesperadas, afinal, a vida continua acontecendo, quer estejamos por perto ou não. No meu caso, a situação inesperada foi lidar com a perda de entes queridos. Durante minha mobilidade, recebi, em momentos diferentes, a notícia do falecimento de minha avó e bisavó, bem como de amigos próximos da família, e lidar com o luto estando tão distante, sem conseguir prestar apoio ao restante da minha família de uma forma que seria possível se estivéssemos juntos foi de fato algo que nunca imaginei que pudesse ocorrer. Todo esse aspecto emocional, tão pouco discutido, faz também parte de uma experiência internacional, e não acontece de forma isolada da vida acadêmica, devendo muitas vezes ser administrado em meio às obrigações desta.
Ainda graças à tecnologia, entretanto, mesmo em um período de isolamento, que traz um grande prejuízo ao aspecto social de uma mobilidade acadêmica internacional, pude ter contato com meus colegas de turma e me sentir parte da comunidade acadêmica. Nesse sentido, fui muito bem acolhida por todos com que tive contato e percebi um grande esforço para que não me sentisse sozinha em meio a todas essas eventualidades. Todos nós estávamos enfrentando juntos uma situação completamente inédita e pude ver muitos dos meus colegas privados de diversas tradições que marcam a vida acadêmica portuguesa.
Todos os anos, em diversas cidades portuguesas com forte presença universitária, como é o caso do Porto, ocorre um evento chamado “Queima das Fitas”, que marca o fim do ano letivo e serve como um rito de passagem aos finalistas, e é uma comemoração de extrema importância cultural não apenas para a comunidade acadêmica, mas para toda a cidade. Por conta da pandemia, todos os eventos ligados à Queima foram ou adiados, ou realizados on-line, o que teve um impacto grande nos alunos, que esperam toda sua vida acadêmica por esse momento. O mesmo aconteceu com a festa de São João, uma festa popular que mobiliza toda a cidade, que também foi cancelada em meio à pandemia. Sendo assim, todos os alunos, sejam eles nativos ou intercambistas, foram sujeitos a essas situações inesperadas, e de certa forma sofreram, em conjunto, perdas em suas experiências acadêmicas, tendo que encontrar maneiras de passar por essas situações da melhor maneira possível – o que se traduziu em um senso de solidariedade que provavelmente nenhum de nós poderia ter previsto testemunhar no início deste ano letivo.
Mesmo com o molde de aulas fora do convencional, e estando afastada das instalações da faculdade por um tempo, para mim, o crescimento profissional advindo deste período de mobilidade foi muito expressivo para mim. Muitos não sabem, mas a Medicina Veterinária é extremamente ampla, incluindo além de clínica e cirurgia de grandes e pequenos animais, competências como saúde pública; tecnologia, inspeção e controle de produtos de origem animal; defesa sanitária; economia, administração e extensão rural; zootecnia; entre outras. Essa amplitude da área faz com que eu a considere apaixonante, mas ao mesmo tempo gera uma certa ansiedade no sentido de escolher qual carreira seguir dentro dela e era exatamente neste dilema que eu me encontrava antes de ingressar na mobilidade.
Na Universidade do Porto, porém, ao ter contato com a disciplina de Saúde Pública, ao discutir assuntos voltados para a atuação do médico veterinário na saúde única, bem como ter tido con- tato com diversos profissionais que lidam com a área em diferentes frentes, acabei por descobrir a carreira que gostaria de seguir. Além disso, tive a oportunidade de aprender sobre a abordagem da União Europeia em assuntos como segurança alimentar, planos de controle de zoonoses, posse responsável de animais de companhia, controles fronteiriços e legislação de controle à resistência a antimicrobianos, o que certamente contribuiu para enriquecer o debate e o aprendizado que obtive ao retornar ao Brasil e abordar assuntos afins em outras disciplinas na UFF.
Sendo assim, mesmo tendo tido esta experiência em meio a uma situação completamente inesperada e fora do convencional, posso afirmar que a mobilidade acadêmica internacional é uma oportunidade extraordinária, que traz não só um enriquecimento acadêmico e profissional, mas também um crescimento pessoal, emocional e cultural imensurável. Tive a oportunidade de me apaixonar pela cidade do Porto, um lugar que sempre vou me lembrar como o cenário de uma das épocas mais marcantes da minha vida, e tenho certeza que todo o aprendizado que trouxe comigo será integrado não só na minha vida pessoal, mas principalmente no meio acadêmico da Universidade Federal Fluminense e utilizado para futuramente enriquecer a atuação no meio profissional do nosso país.