O caminho se faz viajando

Vitória Marinho Wermelinger

Graduada em Ciências Sociais pela UFF.

Foi intercambista na Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) em 2018.

Não me lembro ao certo o que me fez escolher exatamente Moçambique como destino do meu primeiro intercâmbio. A inscrição no processo seletivo para a mobilidade foi no meado de 2017 e o resultado positivo veio em dezembro do mesmo ano. A sensação foi de felicidade e medo. Muitos questionamentos: “Eu sozinha em um país tão distante? Será que dou conta?”. Uma das coisas que me confortava era o idioma em comum e uma intuição de que encontraria por lá algo que há muito tempo eu procurava, mesmo que eu não soubesse o que era. Estava no terceiro ano da graduação em Ciências Sociais, era pesquisadora voluntária de uma pesquisa sobre os professores da educação básica e suas relações com o saber e precisava me decidir sobre o tema a ser abordado em minha monografia. Bem, e a resposta sobre a temática do meu trabalho de conclusão de curso só viria depois dos seis meses vivendo em Moçambique, o que irei explicar mais adiante.

Moçambique é um país que se situa na África Oriental, e que em 1505 foi anexado pelo Império português. Depois de mais de quatro séculos de domínio português, Moçambique tornou-se independente em 1975, transformando-se na República Popular de Moçambique por meio de uma revolução socialista. Esse processo durou 10 anos, até o cessar-fogo em 1974, quando na sequência a liderança nacional foi assumida pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), contando com Samora Machel como Presidente da República até 1986, ano de sua morte. O país seguiu um regime socialista e unipartidário até 1990, que chega ao fim com a aprovação de uma nova Constituição proposta pelo então presidente, Joaquim Chissano.

Criar coragem para tomar a decisão de partir não é fácil. A jornada em direção ao novo demandou muito mais de mim do que eu poderia imaginar. Foram inúmeros os motivos que me levaram a arrumar as malas e atravessar um oceano, mas hoje tenho a certeza que cada um desses motivos valeram a pena, bem como outros motivos que surgiram durante a caminhada e que me fizeram permanecer até o fim do intercâmbio sem pensar em desistir. Afinal, nós estamos sempre nos reconstruindo durante os trajetos que percorremos.

Durante o período da mobilidade acadêmica morei na cidade de Maputo, capital de Moçambique, mais especificamente na residência estudantil da Avenida Amílcar Cabral, que cruzava com a Avenida Mao Tse Tung[1]. A hospedagem na moradia estudantil foi fundamental para a minha socialização, sobretudo com os estudantes moçambicanos e de diversos outros países.

A experiência de morar em outro país não consistiu em um sonho de ponta a ponta, muito pelo contrário, foi a solidificação de um sonho, que como qualquer outra realidade, possui suas imperfeições, mas que me fez imensamente mais madura e segura de mim. Chorei algumas vezes, e sorri ainda mais vezes, como por exemplo quando entrei pela primeira vez no Oceano Índico, quando cruzei o país de ônibus, e ao fazer tantas outras coisas que até então eram inéditas para mim. Sorri também todas as vezes que chegaram brasileiros que me levavam de presente algum um pedacinho do Brasil, melhor ainda quando era um presente com cheiro e gosto, como um café, uma paçoca ou um doce de leite.

A minha experiência acadêmica se deu através do curso de Ciências Políticas na Universidade Eduardo Mondlane, que leva o nome de um dos fundadores e primeiro presidente da FRELIMO. As matérias que cursei me possibilitaram o acesso a novos debates, bem como e uma nova forma de pensar a minha profissão naquela altura, o que foi excelente para mim, que naquele momento nutria muitas inseguranças e indecisões no que dizia respeito ao âmbito profissional e acadêmico. A matéria que mais gostei de cursar foi a de História da Política de Moçambique, que ocupou um papel de me apresentar país que agora eu passava a ser moradora, deste modo, pude conhecer Moçambique não só através das minhas vivências e perspectiva pessoal, mas também através da sua história política e social, o que me permitiu compreender, de uma forma muito mais nítida, questões políticas e sociais atuais que me intrigavam.

Cada dia vivido em Moçambique foi único. Era incrível aprender uma palavra nova, experimentar uma comida tipicamente moçambicana, conhecer pessoas com culturas diferentes da minha, e principalmente sentir as ruas, que no início não passavam de uma confusão de carro e pessoas se tornarem cada vez mais familiares a mim.

Apesar de ter feito inúmeras buscas na internet sobre a cultura moçambicana, nada se compara com a experiência de se estar lá. Uma das mais belas surpresas foi a descoberta das inúmeras línguas locais que até hoje se mantêm vivas e faladas por uma grande parcela da população[2]. Os colegas que lá fiz, por vezes, me perguntaram se eu falava somente o português e não dominava nenhuma língua nativa brasileira.

Conforme o tempo se passava e eu vivenciava a realidade moçambicana, pude observar que o recente processo de independência do país me possibilitou compreender de forma mais nítida os reflexos deixados pela colonização portuguesa, algo para o qual não me atentava tanto antes de ir para Moçambique. Durante a experiência da mobilidade pude compreender de forma mais assertiva o que consiste ser alguém oriundo de um país colonizado. Os questionamentos foram muitos, me perguntava o porquê ter tomado essa consciência crítica de forma tão profunda apenas durante essa estadia em Moçambique. Aos poucos fui ligando os fatos e pude compreender o quanto a educação influenciou nesse processo, uma vez que a partir dos conteúdos que tive acesso por meio matéria sobre a história política de Moçambique comecei a refletir sobre como o processo de colonização portuguesa foi cruel e deixou marcas de exclusão e desigualdades que persistem até os dias atuais não somente em Moçambique, mas também no Brasil e em outros países que sofreram com o processo de colonização.

Aprender mais sobre a história de Moçambique foi essencial para o meu processo de entendimento acerca de inúmeras questões que antes não eram tão óbvias para mim. Desta forma, aos poucos fui entendendo, que mesmo fazendo parte de um passado relativamente distante, o processo de colonização portuguesa no Brasil nos negou o acesso a nossa verdadeira história e cultura dos nossos povos nativos. Enquanto o tempo passava e mais eu descobria sobre a história de luta do povo moçambicano em prol de sua libertação, mais eu sentia vontade de pesquisar sobre as lutas de libertação ao redor do mundo e de também compreender a realidade do Brasil, mas agora ciente do legado negativo que a colonização pode deixar em um país.

Quando eu voltei para o Brasil eu não tive dúvidas de que precisava de alguma forma falar sobre como a experiência colonial poderia nos afetar ainda nos dias de hoje e principalmente no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem. O processo de descolonização não deu fim a todas as problemáticas existentes nas sociedades colonizadas. Apesar de o colonialismo ter se dissipado, uma vez que a dominação de um povo por outro por vias de cunho político, jurídico, militar e administrativo tenha chegado ao fim, a colonialidade, por sua vez, surge como resultado do colonialismo moderno. A colonialidade é responsável pela elaboração de um padrão de poder em que a ideia de raça e o racismo se constituíram como princípios organizadores da acumulação do capital em escala mundial e das relações de poder no sistema-mundo (BERNARDINO-COSTA, 2018, p. 121).

Os traumas deixados pela colonização se fazem presentes em muitos aspectos nas sociedades, assim como podemos notar em nosso país e como pude notar também em Moçambique. E a escola, por sua vez, se mostra como um nítido reflexo dessa influência colonial, de modo que pode-se afirmar que vivenciamos um problema de igualdade de oportunidade dentro da escola. Para que seja possível atingir uma educação de fato emancipadora é fundamental que o interesse de todos esteja representado nos conteúdos e materiais que chegam até a escola, para que a mesma não se torne (ou se mantenha) um instrumento de homogeneização e de assimilação da cultura eurocêntrica dominante.

Sinalizo que a educação ocupa um importante papel nesse processo de reconhecimento cultural, uma vez que desde a escola até a universidade nos deparamos com um ensino majoritariamente eurocentrado, que, recorrentemente, apresenta a narrativa do colonizador como a principal, sem, no entanto, ao menos se lembrar dos heróis e movimentos de luta e libertação dos povos nativos dos países colonizados. Quando a educação se estabelece contando a versão apenas do colonizador e não também de quem foi colonizado é difícil nos sentirmos representados, é difícil nos entendermos como parte desses povos nativos que tiveram suas terras, riquezas e liberdade usurpadas pelo fenômeno da colonização, bem como elucida Rosevics (2017, p. 190):

Na América os espanhóis e os portugueses destruíram quase que completamente a memória do período anterior à ocupação através da desintegração dos padrões de poder e das civilizações existentes na região, do extermínio de comunidades inteiras e de seus portadores de cultura e poder, tais como os intelectuais, os artistas, os cientistas e os líderes. Como aponta Aníbal Quijano (2005), os sobreviventes do massacre promovido pelos ibéricos foram submetidos a uma repressão material e subjetiva durante séculos, até que desaparecesse qualquer relação imaginária com o passado pré-colonial. A esta condição, somam-se às experiências distintas dos milhares de imigrantes europeus e traficados africanos que passaram a fazer parte destas sociedades.

Tais reflexões que me ocorreram durante a estadia em Moçambique me renderam uma monografia que teve como objetivo analisar o Currículo Mínimo de Sociologia do estado do Rio de Janeiro, verificando a presença de conteúdos que promovam a representatividade étnica, racial e cultural dos povos colonizados no Brasil, buscando, assim, saber se ele pode ser considerado um currículo multicultural. E também a minha atual pesquisa do mestrado, que partindo do ponto de como recorrentemente o poder do colonizador invade e submete o imaginário do colonizado, tem por objetivo em analisar os livros didáticos de Sociologia disponibilizados pela Política Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2018 e 2020, verificando a presença de conteúdos que promovam a representatividade étnica, racial e cultural dos povos colonizados no Brasil, assim como é proposto pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08.

Conhecer outra cultura me possibilitou enxergar de forma mais nítida problemas que também persistem em meu país. A partir da experiência da mobilidade acadêmica me vi rodeada de inúmeros questionamentos acerca da história e construção social do meu país, que me instigaram e levaram a questões de pesquisas com as quais trabalho até os dias atuais. É imprescindível dizer que o intercâmbio operou em mim muitas transformações pessoais, que interferem diretamente na minha vida acadêmica. Poder ver a sua realidade com um certo distanciamento e tendo outra cultura como parâmetro nos permite perceber coisas que antes passavam despercebidas, de modo que tais avanços podem ser essenciais em inúmeros aspectos de nossas vidas, nos proporcionando um novo horizonte de possibilidades e compreensões que muito se relacionam com o nosso futuro profissional e acadêmico. Esse distanciamento da minha zona de conforto me fez traçar novos objetivos e escolhas para a minha vida.

A mobilidade acadêmica foi um momento único em minha vida, um período em que pude me conhecer melhor, experimentar viver de uma outra forma e em outra cultura. A missão de adaptar-se a um mundo tão diferente por vezes é tranquila e prazerosa, mas em determinados momentos exige um maior esforço e coragem, uma vez que se está sozinho. Viver em outro país nos faz entender que muitas das vezes nós é quem temos que nos adaptar às situações da vida e não o contrário, e assim, pouco a pouco passa-se a compreender determinadas normas e costumes.

Há inúmeros motivos para se realizar um intercâmbio, dentre elas, aprender um novo idioma, conhecer e experienciar uma nova cultura e fazer novos amigos. Cada um desses motivos nos modificam e dão um novo sentido à nossa vida. A experiência de um intercâmbio caso pudesse ser resumida em uma palavra, seria a palavra mudança. No meu caso, essa mudança resultou em uma nova forma de enxergar o meu país e a sua história, bem como na vontade de pesquisar mais a fundo em como a colonização influenciou em inúmeros processos de desigualdades que são vividos ainda nos dias de hoje.

Sem dúvida, a escolha de ir estudar em outro país sempre está relacionada a um grande processo de transformação. Essa transformação, ao meu ver, se faz necessária, é uma parte essencial da experiência, senão não é intercâmbio. Um intercâmbio é uma das melhores formas de se percorrer uma estrada alternativa, que vai no caminho oposto ao da sua zona de conforto, representando a oportunidade de se viver algo muito além daquilo que pudemos imaginar um dia, pois nunca sabemos o que encontraremos quando resolvemos desbravar um novo caminho.

Notas

[1] As ruas de Maputo em sua maioria levam os nomes de revolucionários de diversas partes do mundo.

[2] Moçambique, mesmo tendo o português como idioma oficial, cultiva 33 línguas ativas em seu território, de acordo com a Cátedra de Português da Universidade Eduardo Mondlane.

Referências

BERNARDINO-COSTA, J. Decolonialidade, Atlântico Negro e intelectuais negros brasileiros: em busca de um diálogo horizontal. Revista Sociedade e Estado, v. 33, n. 1, p. 119-137, 2018.

REIS, M. N.; ANDRADE, M. F. F. O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço Acadêmico, n. 202, p. 1-11, 2018.

ROSEVICS, L. Do pós-colonial à decolonialidade. In: CARVALHO, G; ROSEVICS, L. (orgs.). Diálogos internacionais: reflexões críticas do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Perse, 2017.

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