A vida acadêmica de um estudante estrangeiro no Brasil: relatos de experiência profissional e pessoal num contexto sociocultural de constantes adaptações
António Miguel PauloGraduando em Ciência Ambiental pela UFF, através do Programa de
Estudantes – Convênio de Graduação (PEC-G), originário da Angola.
O presente artigo relata a experiência acadêmica de estudante estrangeiro e como de forma significativa, a academia e a conjuntura sociocultural contribuíram para o desenvolvimento profissional e pessoal. O objetivo deste artigo é transmitir minha experiência do percurso académico numa perspectiva única, enquanto estudante estrangeiro. Está organizado em três partes, na primeira parte será abordada a inserção no tecido social brasileiro pela primeira vez, assim como as adaptações resultantes do mesmo. E a segunda aborda a UEA-UFF, organização da associação de estudantes africanos instituída de forma legal pela primeira vez desde a fundação da universidade. A terceira e a última, aborda sobre o primeiro festival de teor científico e cultural realizado na universidade por estudantes africanos. Sabemos que, normalmente, a emigração incide transformações que advém do alcance da própria transição migratória, que se dá na conjuntura de novas culturas, novos conhecimentos, dentre outros. E, essas transformações alcançadas, dão-nos uma visão holística, nos permitindo discutir aspectos socioculturais sob vários enfoques. Logo, o nosso cotidiano nos remete a um aprendizado diverso. Sendo assim, procurei conhecer vários lugares com intuito de conhecer e viver a cultura da cidade aproveitando a estadia prolongada. Para compreensão e embasamento histórico do relato da experiência pessoal e acadêmica como estudante estrangeiro no Brasil, utilizei a literatura estrangeira acerca da mobilidade estudantil, tendo como referência o Programa de Estudantes – Convênio de Graduação (PEC-G) o vínculo deste deslocamento em busca de formação superior. Também, fiz alguns levantamentos em artigos, relatórios do Instituto de Ensino Superior brasileiros (IES), Divisão de Temas Educacionais e Língua Portuguesa (DELP), e no Ministério das Relações Exteriores (MRE).
Contextualização
O programa de Estudantes – Convênio de Graduação (PEC-G), criado em 1964, oferece vagas de graduação em Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras a estudantes de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordo de cooperação educacional, cultural ou científico-tecnológica.
O Decreto Presidencial n. 7.948, publicado em 2013, atualmente rege o programa, conferindo maior força jurídica ao regulamento do PEC-G. O Ministério das Relações Exteriores administra o programa por meio da Divisão de Temas Educacionais e pelo Ministério da Educação com a parceria das Instituições de Ensino Superior em todo o país.
De acordo com os dados levantados pela Divisão de Temas Educacionais (DCE) e pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), nas últimas décadas houve mais de 9.000 estudantes selecionados, sendo o continente africano com maior número de estudantes, representando 76% dos selecionados. Dentre as nações africanas participantes destacam-se: Cabo Verde, com um total de 3.169 estudantes registrados, Guiné-Bissau, 1.416 estudantes e Angola com um total de 753 estudantes.
Existe um processo seletivo que é submetido a todas candidaturas recebidas do exterior por uma comissão de seleção, instituída por Portaria do MEC e composta por professores provenientes de IES de cada uma das regiões da Federação, as distribuições das vagas geralmente são oferecidas pelas Instituições de Ensino Superior entre os candidatos dos países participantes.
É importante ressaltar que o programa para além de cooperar para a formação de profissionais de países em desenvolvimento, também contribui para a internacionalização e diversificação do cenário acadêmico brasileiro, assim como a expansão sociocultural e a inserção de culturas dos países participantes para sociedade brasileira. Angola está entre os países africanos com mais representatividade, em termos de número de estudantes selecionados no programa PEC-G, segundo dados da DCE de 2000 a 2019, o número de estudantes angolanos selecionados foi de 753.
De acordo com Castro e Cabral Neto (2012), dentre as políticas atuais para o ensino superior, a internacionalização desponta como uma estratégia importante para a inserção dos países no mundo globalizado, quer seja pela perspectiva da solidariedade defendida pela UNESCO, quer seja pela prática mercantilista propugnada pela Organização Mundial do Comércio.
Segundo Carvalho Filho et al. (2016), nas últimas décadas, a mobilidade de estudantes cresceu com fins de estudos entres países. De acordo com as estatísticas do relatório da UNESCO (2006), em 2004 pelo menos 2,5 milhões de estudantes superiores se encontravam fora de seus países de origem comparando com os percentuais dos cincos anos anteriores, que era de 1, 75 milhões apenas, representando um aumento de 41% desde 1999. Essa informação apresenta um registro de que algumas regiões apresentam taxas mais elevadas em relação às demais quando se fala do aumento da mobilidade com fins de estudo.
Inserção no tecido social; meu primeiro contato com o contexto social brasileiro
A cidade do Rio de Janeiro tem uma população estimada em 6.719 milhões e é uma cidade atrativa com diversidade cultural com uma formação étnica vasta e diversa. Os hábitos culturais possuem uma formação indígena, africana, europeia (espanhóis, italianos e portugueses) e asiática (japoneses).
Por ser uma cidade de conglomerado de cultura, torna-se fácil para alguns estrangeiros se identificarem. É notório, a similaridade cultural entre Brasil e Angola começando pela música, a título de exemplos o samba que deriva do “semba”; a capoeira que até nos seus contos trazem histórias da cidade de Benguela, que é uma das províncias de Angola assim como Luanda um dos movimentos mais praticados da própria arte. E bairros cujos nomes são de origem angolana. Uma forte e presente herança histórica.
No ano de 2015, fui selecionado para o programa de convênio, no curso de Ciência Ambiental pela Universidade Federal Fluminense no estado do Rio de Janeiro.
Neste mesmo período, me encontrava a frequentar a Universidade Independente de Angola, o interesse em buscar novos conhecimentos era maior, encontrei nesta seleção uma forma de adquirir uma nova experiência.
Meu desembarque foi na cidade de Niterói, onde fixei minha residência, numa república que compartilhava com estudantes de outras nações africanas. Antes de conhecer a Universidade, comecei por visitar a cidade para conhecer referências históricas do Rio de Janeiro. Logo, para a minha satisfação conheci o Cristo Redentor, Arco da Lapa, Museu de História Nacional, centros culturais, logradouros e Pedra do Sal, lugar onde se encontra a Comunidade Remanescente Quilombo Pedra do Sal, que foi tombada em 20 de novembro de 1984 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural. Também conheci outras vias e construções centenárias.
O contato com essas referências históricas foi um fator decisivo para entender a magnitude da importância de conhecer a história do país para melhor se orientar e ter um embasamento cultural.
A experiência com a sociedade, em função de alguns aspectos culturais, me fez sentir identificado e representado. Algumas pautas sociais que são discutidas como questão racial foi focal na visão gerada em mim, sobre as diversas formas como os negros são interpretados. Levou-me a participar da fundação da UEA-UFF (União dos Estudantes Africanos) com intento de trazer narrativa histórica na primeira pessoa sobre o continente africano.
No primeiro dia de aula, fui convidado a falar sobre Angola, e aproveitei para discorrer sobre alguns aspectos pontuais relativamente à cultura, política, economia e, sobretudo à questão educacional. Na questão da educação apontei, pontos como a interação dos professores com os alunos e o sistema de aulas que apresenta mais cargas horárias e a grade curricular.
Fundação da UEA-UFF, associação de estudantes africanos: minha experiência como cofundador
A União dos Estudantes Africanos foi criada em 25 de maio de 2019 quando das reflexões no dia da união africana. A sua criação tem por objetivo promover as contribuições especificamente africanas para o avanço do conhecimento sobre povos e culturas de África, com o intuito de contribuir no desenvolvimento e na busca de identidade e cultura africana dos afro-brasileiros e dos africanos. A associação é, atualmente, a única associação na universidade com uma característica multidisciplinar na área de pesquisas africanas na UFF dedicada ao estudo de África a partir de uma perspectiva africana.
Os objetivos da Associação dos Estudantes Africanos são:
- Promover e fomentar a cultura africana na universidade e arredores da cidade de Niterói;
- Apoiar a criação de redes e trocas interdisciplinares entre acadêmicos africanos, afro-brasileiros e outros com interesses semelhantes;
- Criar Centros e Institutos de Estudos Africanos no continente americano;
- Promover a pesquisa e o debate sobre assuntos cruciais sobre o estado político, social e econômico do continente africano;
- Promover e encorajar a pesquisa por parte de acadêmicos africanos no continente americano;
- Promover e encorajar uma educação centrada em África – uma compreensão informada sobre África via museus, arquivos, escolas, decisores políticos, ONGs, mídia, empresas, associações e outras comunidades de interesse;
- Encorajar parcerias com associações de Estudos Africanos já existentes e outras organizações interessadas em promover questões africanas.
A fim de promover e fomentar a cultura africana na universidade e arredores da cidade de Niterói, numa discussão com colegas, foi se sustentando a ideia de concretizar a associação. Na sequência, surgiram as palestras, a primeira conferência e o Festival “Tarde Africana”, todas realizadas pela UEA-UFF.
A primeira conferência foi realizada na Universidade Federal Fluminense no dia 25 de maio de 2019, com o tema África panorama social, político e cultural: uma retrospectiva até os dias atuais. Tema que gerou proposta para escrever o livro, desafio que até o momento estamos desenvolvendo ideias e buscando possibilidades.
O evento, que teve parceria da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROAES), objetivava apresentar questões culturais e políticas de África, fazendo uma introspecção até os dias atuais. Teve exibições de danças, músicas e poesias africanas.
Retrato da primeira conferência da UEA-UFF
Primeiro festival de teor científico e cultural organizado pela UEA-UFF: Tarde Africana
O Festival Tarde Africana foi uma atividade de diversidade cultural, projetado para ser realizado semestralmente pela UEA-UFF para o fomento da cultura africana nas comunidades e arredores de Niterói, aproveitando a vivência dos afrodescendentes e semelhante, trocando impressões culturais no fomento do reforço e nutrir a necessidade de estabelecer a identidade cultural com estes parceiros. O evento contou com representantes de países como Angola, Quênia, Nigéria, Gana, Gabão, São Tomé e Príncipe, Senegal, Congo Democrático, Cabo Verde, Costa do Marfim, Togo, Benin, Guiné Bissau, Moçambique e outros. O festival tinha os seguintes objetivos:
- Promover a cultura africana; promover a defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico africano e afro-brasileiro; promover e incentivar o intercâmbio cultural;
- Fomentar a economia do empreendedorismo negro;
- Promover os artistas de rua dando visibilidade nos seus trabalhos;
- Promover um festival com uma temática que focasse na transmissão da história africana e a difusão do conhecimento do acervo cultural do município.
No dia 10 de outubro de 2019, foi realizada a primeira edição do Festival Tarde Africana, com diversas atividades e artistas africanos e afro-brasileiros vindos de vários pontos do Brasil. O festival teve como tema “Identidade e Memória”, cada artista apresentou sua obra refletindo a cultura do seu país. Foi realizado no espaço Zumbi dos Palmares da UFF e com parceria das Negras Potentes.
Foi apresentada uma programação que exibia uma variedade de expressões culturais. Retratando a identidade e memória do continente africano e com algum recorte que reflete a vida da diáspora africana. A programação foi apresentada no seguinte viés: Danças, Música ao vivo, Exposição de artes plásticas, Feira de empreendedorismo negro, Oficina de trança, Gastronomia Africana e Afro-brasileira, Percussão.
Resultados Esperados
Criar, fomentar e conscientizar a comunidade e arredores sobre o continente africano e seu envolvimento no desenvolvimento do mundo e em especial do Brasil; cultivar uma visão comunitária a par da realidade dos povos e cultura africana e fomentar opinião sobre África baseada em pesquisa e convivência.
A pretensão é ser a primeira marca de festival de africanos criada neste formato, que se multiplicará pelo estado do Rio de Janeiro e, posteriormente, no país, tornando-se uma iniciativa histórica.
Por causa da dificuldade de aquisição de livros, foram exibidos trechos de frases e escritos de pensadores africanos relevantes na história de cada país, e que de certa forma mudaram o rumo do continente africano positivamente e negativamente, nos levando a entender onde estamos e para onde iremos dentro das análises desenvolvidas, em cada pensamento, em cada diálogo, sem perder a “Identidade e as Memórias” africanas que nos incentivaram e nos levaram até à diáspora.
O Festival Tarde Africana proporcionou uma integração artística, ao mesmo tempo em que promovia ações em defesa da liberdade religiosa, da tolerância, diversidade e pluralidade cultural, religiosa, política que representava os 54 países africanos na sua ampla diversidade que nos sustenta num todo.
Entendendo a importância da atividade desta natureza e a nossa participação como africano na reconstrução da identidade das diásporas, seguimos continuando com tais atividades em escolas estaduais de ensino fundamental e nas comunidades e núcleos de grupos sociais.
Retrato oficial do Festival Tarde Africana
Considerações finais
Neste artigo, foi apresentado o discurso representativo das experiências como estudante estrangeiro vinculado ao programa PEC-G na Universidade Federal Fluminense. Considero agregador todo o processo no âmbito acadêmico quanto social que vivenciei e que culminou em experiências pessoais e profissionais.
Além disso, percebo que a construção da formação enquanto estudante perpassa sobre todos esses aspectos, principalmente quando estamos diante a um contexto sociocultural diferente e o fator de ser migrante. Logo, a necessidade de contribuir significativamente para o meio acadêmico e social nos deu retorno. Muitas adaptações foram feitas para melhor se enquadrar. E com facilidade no meio social, o percurso acadêmico representou, neste cenário de construção de experiências, um momento único, e despertou a visão holística que foi me permitindo alcançar outras realizações pessoais e profissionais. A fundação da associação UEA-UFF é uma representação que permitiu uma afirmação na universidade como estudante africano, ou seja, foi a primeira atividade realizada com aquela magnitude por estudantes africanos. É importante ressaltar a importância da existência desta associação, não apenas como meu crescimento pessoal e de participação como membro de uma sociedade, tanto social quanto acadêmica, mas como parte integrante de uma universidade que se apresenta integradora.
Referências
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Divisão de Temas Educacionais. Programa de estudantes: convênio de graduação PEC-G: manual do estudante-convênio. Brasília, 2015. Disponível em: https://www.ufmg.br/dri/wp-content/uploads/2012/07/Manual_do_Estudante-Convenio.pdf. Acesso em: 02 jan. 2021.
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Divisão de Temas Educacionais. Programa de Estudante-Convênio de Graduação – PEC-G. DCE, S.d. Disponível em: http://www.dce.mre.gov.br/PECG.html. Acesso em: 02 jan. 2021.
CASTRO, Alda Araújo; CABRAL NETO, Antônio. O ensino superior: a mobilidade estudantil como estratégia de internacionalização na América Latina. Revista Lusófona de Educação, n. 21, p. 69-96, 2012. Disponível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-72502012000200005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 02 jan. 2021.
CARVALHO FILHO, Valério et al. A experiência dos estudantes africanos expatriados no Brasil: uma análise à luz das correntes teóricas da expatriação. Gestão e Desenvolvimento, v. 13, n. 1, p. 112-129, 2016. Disponível em: https://periodicos.feevale.br/seer/index.php/revistagestaoedesenvolvimento/article/view/158. Acesso em: 02 jan. 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA – UNESCO. Compendio mundial de la educación 2006: comparación de las estadísticas de educación en el mundo. Montreal: Instituto de Estadística de la UNESCO, 2006. Disponível em: http://www.uis.unesco.org/TEMPLATE/pdf/ged/2006/GED2006_SP.pdf. Acesso em: 02 jan. 2021.